sábado, 7 de dezembro de 2013

VENDA OU COMPRA DO LIVRO "MINHA QUERIDA ARACAJU AFLITA"



VALOR, JÁ COM FRETE POR VIA COMUM, PARA TODO O BRASIL : 20,00 (VINTE REAIS).

FORMA DE PAGAMENTO: transferência bancária antecipada a ser acertada no ato da compra.

A COMPRA DEVE SER FEITA ATRAVÉS DO EMAIL: afjsaracura@ig.com.br ou pelo telefone 79-99883700

120 páginas, 1ª .edição em 2011, crônicas do dia-a-dia da cidade de Aracaju.
Isbn 978-85-63318-12-1

O livro recebeu o prêmio Mário Cabral de Crônicas de 2010 promovido pela Secretaria de Cultura do Estado de Sergipe. São 54 saborosas e picantes crônicas, cada uma de apenas uma pagina e meia, tratando das mazelas, das doencinhas da capital sergipana. As mazelas são analisadas em dois estágios. O primeiro avalia as circunstâncias e o segundo, arrisca um diagnóstico. Em todas elas, o leitor fica na sensação de que o remédio está à mão, mas escapa escorregadio. E não consegue segurar a espontânea  gargalhada. As crônicas falam de costumes, manias do povo, saúde pública, segurança, homofobia, etc.
Sobre o livro escreveu Vladimir Souza Carvalho (da Academia Sergipana de Letras): “Minha Querida Aracaju Aflita se apresenta como um dos bons livros de crônicas da bibliografia sergipana, na mesma linha de um Garcia Moreno, Alberto Carvalho, Carmelita Pinto Fontes e Petrônio Gomes....” Veja  a íntegra da resenha e outras (de outros leitores) em “www. minhaqueridaaracajuaflita.blogspot.com”. 





quarta-feira, 26 de junho de 2013

Eduardo Garcia fala (tambémobre "Aracaju Aflita"

Veja quem é Eduardo Garcia no blog do livro 
"Meninos que não queriam ser padres" (google)


Eduardo Garcia <egarcia@ufs.br>
12:31 (6 horas atrás)
para mim
afjsaracura@ig.com.br


Prezado amigo Antonio Saracura,
        A leitura prazerosa trouxe-me uma inquietante sensação de
prematuridade quando, ao chegar à página 255, encontrei a declaração de que o
seu livro ”Meninos que não queriam ser padres” havia chegado ao “Fim”.
Encontrei nele um estilo agradável e uma escrita aligeirada conduzida sob a
forma de diário, resultando num relato romanceado sobre coisas e experiências
de um cotidiano vivido em ambiência singular. Das traquinagens no tempo de
seminarista - a exemplo das relatadas em “Os tiros de sal” - aos momentos de
maior profundidade reflexiva, tal como se lê em “O filho protegido”,
impressionou-me por sua maneira cativante de escrever, estilo que, por certo,
é resultado da sua dedicação à leitura e aos estudos. Ressalto ainda, por
mérito, a sua habilidade em distinguir e a coragem de ter escolhido os
caminhos que optou por trilhou na sua vida.
        Aproveito para dizer-lhe, mais uma vez, dos meus agradecimentos pela
gentileza do envio de “Os tabaréus do sítio Saracura” e “Minha querida Aracaju
aflita”. Confesso-lhe ter achado deliciosas as crônicas reunidas nesta última
obra, onde destaca vivências do cotidiano na cidade de Aracaju. Reforço também
a minha admiração pelo destaque que deu ao seu amor telúrico à Terra Vermelha,
seu torrão natal, tão carinhosamente tratado nas suas memórias de uma vida
vivida no Sítio Saracura.
        Estou certo de estar comungando com alguém que tem o amor à palavra e
que, dono de saber polimórfico, a todos nós, sergipanos, estimula e
engrandece.
        Receba os meus parabéns!
        Sinceramente,
        Eduardo A.C. Garcia

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Webmail da Universidade Federal de Sergipe.
Antonio Francisco de Jesus <afjsaracura@ig.com.br>
19:12 (4 minutos atrás)
para Eduardo
Caro amigo Eduardo Garcia

Obrigado por ter lido meus livros e pelas palavras agradáveis que escreveu. O que um escritor quer mais? 
Um grande abraço, Antônio Saracura


Em 26 de junho de 2013 12:31, Eduardo Garcia <egarcia@ufs.br> escreveu:

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Um leitor (Tatá) fala dobre o livro


Neuli Paz <neuli.paz@gmail.com>
18:26 (3 horas atrás)
para mim
Antônio Saracura:
 Caiu-me às mãos, por benevolência de Clarêncio Martins, seu livro "Minha querida Aracaju Aflita". Adorei sua prosa no gênero crônica: textos bem construídos, enxutos e de agradável proseio. Mande seu endereço postal para que eu possa lhe enviar livros de minha autoria. 
-- Saudações literárias.
Geraldo Hamilton de Menezes - "Tatá".



Antonio Francisco de Jesus <afjsaracura@ig.com.br>
21:41 (1 minuto atrás)
para Neuli
Geraldo Hamilton,
Meu endereço é Rua Leonel Curvelo, 117 apto 401 A
49050-485 bairro Suissa -  Aracaju Sergipe.
Se tiver tempo, leia "Os Tabaréus do Sítio Saracura" e "Meninos que não queriam ser padres".
Obrigado pelo feedback, fiquei tranquilo.
Aguardo
Saracura 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Algumas crônicas do livro



Prêmio Mário Cabral - Crônicas
Comissão Julgadora
Cléa Maria Brandão Santana
Domingos Pascoal de Melo
Gilberto Francisco dos Santos (GilFancisco)
Minha Querida
Aracaju Aflita
Antônio Francisco de Jesus
2011
Crônica
• Obra – “Minha Querida Aracaju Aflita”
• Autor – Antônio Francisco de Jesus (Zeca Olho Grande)
• Local – Aracaju
• Editora – Segrase Ano Publicação – 2011
• Formato – 15 cm x 21 cm
• Número de páginas – 123
Catalogação–na-fonte•
Biblioteca Pública Epifânio Dória, SE
J58m Jesus, Antônio Francisco de
Minha Querida Aracaju Aflita / Antônio Francisco de Jesus.-
Aracaju: Editora Diário Oficial, 2011.
123p. 21 cm
ISBN 978-85-63318-12-1
1. Literatura Sergipana 2. Literatura – Crônica
I. Título II. Autor III. Assunto
CDU 82-94(813.7)
CDD 869.93
Sumário
1. A Praça Prometida 9
2. Visitante sem Lustre 11
3. A Cidade em Festa 13
4. Um Pouco de Paz 15
5. Meu Querido Cão 17
6. Meu Cachorro não Morde 19
7. A Sacola de Loja Chique 21
8. Sem Jeito Nem Trejeito 23
9. Greve dos Aposentados 27
10. Os Primeiros Invasores 29
11. O Bar na Praça 31
12. Bicicletas Barulhentas 33
13. A Cidade Gratuita 35
14. Cão de Guarda 37
15. Alguém para Correr Comigo 39
16. Manuscada com Chumbinho 41
17. As Feiras Livres demais 43
18. Meu Plano de Saúde 47
19. Os Donos das Armas 49
20. Um Síndico Idôneo 51
21. Peixinhos e Pintinhos 53
22. Pedido de Socorro 55
23. Voto de Confiança 57
24. Cuidado com Paulista 59
25. Esgoto nos Mangues 61
26. Carrinhos de Graça 63
27. Os Inchadinhos de Minha Rua 65
28. Homenagem Mútua 67
29. Prédios Abandonados 69
30. Fábrica de Fraturas 71
31. Calçadas Desniveladas 73
32. Os Cones de Lixo 75
33. A Teimosa Banca de Revistas 77
34. A Única Praça do Siqueira 79
35. Entrevista com o Tal Ex-Prefeito 81
36. Um Prédio no Meio da Rua 83
37. O meu Horto das Oliveiras 85
38. Acesso Livre, mas nem tanto 87
39. Pobres Ciclistas 89
40. Pela Contramão 91
41. A Faixa de Pedestres 93
42. O Rosto Cortado 95
43. Guardadores de Carros 97
44. Estacionamento Público e Gratuito 99
45. Sinal Fechado 101
46. Não Reaja 103
47. Vigia Noturno 105
48. As Milícias de minha Rua 107
49. O Direito de Manter minha Arma 109
50. A Vida Fácil de Ladrão 111
51. A Praça Camerino Minada 113
52. Para que dar Parte? 115
53. Alarmes Noturnos 117
54. Desacato à Autoridade 119
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Minha Querida Aracaju Aflita
(Crônicas do dia-a-dia da cidade)
Contate o Autor:
(79) 9988 3700
afjsaracura@ig.com.br
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Antônio Saracura
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Minha Querida Aracaju Aflita
1. A PRAÇA PROMETIDA
Estão construindo quatro prédios na quadra em frente à minha casa. Fase de acabamentos. Nuvens de poeira cobrem meus móveis. Gritos chamando o elevador, pedindo massa-mole (ou massa, mole!). E tem um empregado que nem precisa de pretexto para gritar o dia todo sem parar, irritando-nos todos quer habitantes do entorno, quer seus próprios colegas, que o recriminam sem resultado perceptível. Mas se é pelo bem do progresso...
Quando comprei essa casa, o corretor garantiu-me que o terreno vazio, uma quadra inteira em frente, seria uma praça. A prefeitura tinha o projeto pronto e aprovado. Faltava apenas negociar a desapropriação com os proprietários-herdeiros de capitanias e sesmarias por todo o Brasil que acabavam de receber mais esta de um prefeito carente de futuros favores.
Morei vinte anos aqui, e nada de praça. O terreno era muito baixo e virava uma grande lagoa no período de chuvas, reproduzindo infinitas larvas de muriçocas dengosas que infestaram o local e fizeram o meu mundo inóspito. E, quando as águas baixavam, o terreno transformava-se em uma várzea de pelada, onde pairavam todos os desocupados da cidade e os empresários da noite ilegal, que passavam o tempo todo se revezando em partidas brigadas. Nas beiradas do campo, acomodavam-se atletas aguardando a vez, assaltantes portando armas de fogo e prestando atenção às casas incautas ao alcance da vista. Destes últimos é que ganhei a cicatriz na ilharga direita: um disparo inesperado, uma bala covarde, pois já estava rendido e deitado no chão de minha garagem.
Eu confesso que comemorei relutante os bate-estacas em ação, quando a lagoa ainda estava sendo coada pelos pescadores de camarão contaminado. Minha praça sonhada, nunca mais! Mas não lamentei tanto a praça, pois conheço as histórias de outras praças espalhadas na
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Antônio Saracura
minha cidade, entupidas de bares... Antros de marginais e viciados em
drogas – imundície e fedentina, como é o caso da Praça do Siqueira,
desde quando morava nas redondezas.
Agora os prédios estão fechando o meu leste, truncando o caminho
do vento do mar. O sol da manhã só atinge minha varanda depois
das nove horas, quando já está escaldante. O dia é infernal. Mino
suor deitado na rede da varanda. Se fujo para o fundo da casa, derreto e
recuo apavorado. E não existe o meio neutro, onde possa me refugiar,
pegar um refrigério. A noite inteira exsuda mormaço dos paredões de
cimento. Os ventiladores de meu teto rugem sem efeito. E o condicionador
de ar que instalei no quarto de minha filha alérgica trabalhou
esta noite com um barulho estranho, parecendo motor batido de carro,
não dando conta de expulsar o calor do ambiente. Acordo pela manhã
com o pijama alagado e o pescoço pintado de brotoejas ardidas.
O que fazer?
Talvez deixar chegar o inverno e colocar a casa à venda. Talvez
me mudar para o shopping, como sugeriu minha espirituosa neta. Lá o
clima sempre é ameno.
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Minha Querida Aracaju Aflita
2. VISITANTE SEM LUSTRE
Aracaju é uma cidade hospitaleira, a começar pelo seu povo. Todos nós, aracajuanos, chegamos ao absurdo da ingenuidade de abrirmos a porta de nossa casa para o desconhecido que bate, pedindo um copo de água ou alegando precisar ir ao banheiro; de acreditar até no conto de certo gringo, a ponto de dar-lhe dinheiro adiantado para montar uma fábrica de beneficiamento de camarões na praia de Atalaia. E depois, ficar esperando inutilmente – por muito tempo-o seu retorno dos Estados Unidos, local a que se dirigira para buscar mais recursos.
Foi muito difícil convencer minha vizinha idosa-que mora só e é, por isso mesmo, muito vulnerável e visada-de que não deveria abrir a porta para nenhum desconhecido.
- É falta de caridade cristã!-retrucava.
Por sorte e por azar, certo dia, uma pilantra bem vestida, no seu dizer, com a desculpa de falar-lhe sobre a Bíblia, levou-lhe (só Deus sabe como encontrou) todo o seu dinheiro do mês, que estava dentro de um envelope, embaixo dos lençóis no guarda-roupa. Deu azar, pois perdeu o rico dinheirinho. Deu, por outro lado, sorte. Uma delas, por não ter perdido muito mais, como os utensílios domésticos. Tratava-se de uma vigarista procurada em outras capitais por golpes ainda maiores, segundo o delegado de plantão. A outra sorte, porque aprendeu a lição. A partir desse evento, ficou muito mais cuidadosa, a ponto de só receber os agentes de saúde da dengue, com a presença de um dos filhos ou me chamando aqui em casa, porque tenho estado sempre mais presente.
Quem chega a Aracaju, mesmo que não tenha emprego e lugar certo para morar, seja ladrão ou apenas honesto andarilho, circula pelas ruas e pelas praças, arranca flores dos jardins das casas, e ninguém liga. Nem a população, nem a polícia-até que receba uma queixa formal e insistente. E, por isso, a cidade vive cheia de desocupados fazendo bicos, furtando o que encontra fácil (algumas vezes até difícil).
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Antônio Saracura
E, aproveitando-se dessa franquia, bandidos de verdade camuflam-se
de desocupados, estudando o mercado e definindo ações pontuais.
Os católicos servem sopa quente embaixo dos viadutos, os
evangélicos dão cestas básicas, ambos achando que levam vantagem
na corrida para o céu, como se o número de vagas lá fosse limitado.
Ainda tem o sopão da Legião, as cestas do deputado desinteressado, os
carurus do pobre pela cidade toda, os..., os...
Damos asas às cobras. Muitas delas ficam por aqui de vez,
fazem carreira no crime, elegendo-nos como suas vítimas definitivas.
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Minha Querida Aracaju Aflita
3. A CIDADE EM FESTA
A notícia corre o mundo. Rádio, televisão, jornal, boca-a-boca. Vai ter uma grande festa em Aracaju. Vão tocar as bandas mais badaladas do axé baiano e os forrozeiros maquiados da Paraíba.
O mais quente São João!
O Carnaval mais devasso!
A Festa da Laranja mais doce!
A Micareta mais careta!
A posse do político irresponsável! (Se não ainda, certamente vai ser mais tarde).
Os pequenos ambulantes espalhados num círculo de 50 léguas ouriçam-se, compram promoções de cerveja em lata, salsichas de boa marca e das mais fajutas, sacos de pães, isopores de pontas de estoque.
Na véspera da festa, os paus-de-arara entram na cidade às dezenas. Cheios de negociantes, cheios de oportunistas, punguistas, traficantes e desocupados que não estavam fazendo nada mesmo em suas terras e resolveram aventurar alguma coisa em Aracaju. Estacionam nas vizinhanças da praça do evento. Arriam sua carga de produtos quase passados e de pessoas mal-banhadas nas calçadas das casas de família. Ninguém em Aracaju contou com essa horda de visitantes, ou melhor, o poder público não dotou a cidade de instalações sanitárias e dormitórios razoáveis e suficientes. A rede hoteleira é boa demais para esses ciganos acostumados a barracas de plástico preto. É como se nem existisse! E eles ficam de qualquer jeito, incomodados e incomodando muito mais.
E, na festa, misturam-se com a multidão vestida de abadás onde meninas mostram umbigos adornados e lombinhos se definindo. Confundem-se com todos que acorrem à grande praça. Vendem suas cervejas e seus potentes coquetéis, em isopores na cabeça, em barracas espalhadas em todo canto, autorizadas ou clandestinas.
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Antônio Saracura
Gritos de “pega ladrão” ressoam nas esquinas mais congestionadas.
A “pochete” voa de mão em mão, seguindo a corrente de
parceiros e sumindo adiante, enquanto a vítima, que a viu saltando
num primeiro momento, tenta inutilmente furar a turba na sua direção,
sempre bloqueado por um membro disfarçado da quadrilha orquestrada.
Fim de festa! Carteiras de Identidade amarfanhadas ao chão,
misturadas a confetes e serpentinas. Porta-cédulas chutados na esperança
de tilintar alguma moedinha perdida. Paus-de-arara carregados
outra vez, agora de isopores vazios e passageiros quietos e cansados.
Ressacados, após três dias de intensa ação! Cada um acaricia, em pensamento,
a bolsa escondida sob a roupa, no lugar mais inacessível.
Até chegar a suas casas, muita coisa ainda pode acontecer!
Percebe-se um sorriso contido no rosto ladino desse passageiro,
que não leva para casa isopor nenhum, pois nem o trouxera na vinda.
Sua bolsa está parruda. Chega a incomodar! E não foi envolvido
em nenhum entrevero. Graças a Deus! Afinal, Deus é de todos. Pena
que a festa durou apenas três dias. Mesmo assim, pode agora dar-se
ao luxo de ficar um bom tempo de pernas para o ar. Conseguiu até o
que viera planejando desde o ano passado: limpar o bolso do chefe do
destacamento da polícia militar, encarregado da segurança.
Enquanto isso, uma Aracaju fedida tenta respirar aliviada e não
consegue. Talvez depois de uma boa chuvarada, carregando os restos
da festa para o mar acolhedor. Nenhuma nuvem vagueia, entretanto,
pelo céu de verão.
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Minha Querida Aracaju Aflita
4. UM POUCO DE PAZ
Selecionamos o gerente, que deveria tomar conta da empresa, isto é, da cidade (e pagamos-lhe um bom salário) mas não o faz. Age como se a cidade não fosse sua casa. E é. Deveria se incomodar muito com os visitantes incômodos, por uma lógica muito simples: quem é que aceita ver o seu lar, a qualquer momento, invadido por um desconhecido que circula como se fosse o verdadeiro dono, dispondo do que bem quiser?
Qualquer cidadão (pessoa, ser humano ou assemelhado) que esteja aparentemente sem destino certo dentro de nossa cidade, nos nossos povoados, em nossas ruas, à frente de nossas casas, precisa ser interpelado.
Documentos?
De onde vem?
Para onde pretende ir?
O que busca aqui?
Se as respostas (checadas em bancos de dados já disponíveis) não satisfizerem, deve ser levado a um centro de cadastramento e, depois, a um departamento de acomodação de mão-de-obra ou de devolução às origens. Seria nazismo?
Moro – ou faço de conta que moro-na Coroa do Meio, um bairro distante do centro, distante da rodoviária e do mercado. Poderia a Coroa do Meio, por isso, estar isenta de migrantes vadios. Tem-se que caminhar muito para se chegar aqui. E aqui, por costume, as pessoas vivem trancadas, e suas casas são fechadas por muros muito altos. Uma grande parte dos moradores tem cachorros bravos. Outros têm sistemas de alarme, travando portas e bloqueando muros. Choques paralisantes! Sirenes irritantes! Mesmo assim, o bairro vive cheio de desocupados vindos de longe.
Muitas vezes, ao abrir minha garagem para sair com o carro, encontro-a impedida por famílias inteiras, descansando à sombra
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Antônio Saracura
do muro: os homens inchados de cachaça, as mulheres com o peito
exposto onde um filhote suga e suga. Constranjo-me assustado quando
me cercam, querendo comida, querendo dinheiro, querendo minha
tranquilidade. Minando minha segurança.
Aracaju não pode continuar sendo a casa da mãe Joana (não
o prostíbulo português, mas o lugar onde cada um faz o que quer, vai
aonde lhe aponta o nariz).
Nós, que a construímos com o nosso suor e a mantemos com
nosso sangue (vejam os Iptus cobrados anualmente), merecemos um
pouco de paz.
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Minha Querida Aracaju Aflita
5. MEU QUERIDO CÃO
O cachorro estava com as patas traseiras soterradas na areia da praia. Uma postura clássica de cachorro observando passarinho. O mar, agora mais afastado, beijara seu corpo algum tempo antes. Tanto que cobrira suas patas com areia lavada. Estava bem em frente ao salão de festas “Sobre as Ondas” e ao kartódromo “Nelson Piquet”! Duas excrescências do urbanismo de ocupação de espaços públicos na orla da Atalaia de Aracaju. Vem muito mais por aí-mais privilégios para a elite privilegiada.
Parei junto ao cachorro. Grande e amarelado. Quase um boi. Desses bem alimentados a vida toda. Pelo fino e carnes opulentas. Procurei a marca de ferro que indicasse o proprietário nas ancas rebaixadas – todo boi tem. Não encontrei nenhuma. Nem marca de bala. Mas estava morto, tanto que algumas vísceras já escapavam do flanco direito.
Como fora parar ali, no meio da areia? Por que estava sentado numa postura tão nobre?
Afastei-me um pouco e sentei-me na areia. A vinte metros. Outros caminhantes da manhã passavam e olhavam o cão morto. Paravam um pouquinho e depois se iam. Um aproximou-se de mim como para me consolar. Perguntou-me o que acontecera com o inditoso animal. Apressei-me em dizer-lhe que me atribulavam as mesmas dúvidas. Ele foi embora gesticulando, como se duvidasse de mim. Certamente pensou que eu fosse o dono. Um grupo de turistas, cerca de cinco pessoas, como nadadores de nado sincronizado, passou olhando ao mesmo tempo e só se desligou do cão quando já estava longe.
Não podia, com minhas forças, arrastá-lo para a areia fofa e enterrá-lo. O buraco teria que ser grande demais. Impossível de cavar sem uma pá. E o corpo já começava a exalar mau cheiro. Os veranistas que chegariam logo mais teriam que buscar outro lugar para ficarem.
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Antônio Saracura
Os turistas guardariam uma péssima lembrança da cidade.
Fiz uma investigação na redondeza, buscando descobrir como
o animal parara ali. Encontrei apenas marcas de pneus de um carro que
estacionara na restinga em frente. Talvez algum surfista, talvez o carro
funerário trazendo o defunto?
Voltando para casa, parei na Delegacia de Turismo e comuniquei
o fato-não prestando queixa, mas contando o que vira. A moça
que estava de plantão garantiu-me que acionaria o órgão encarregado
de recolher animais mortos na praia. Que eu ficasse tranquilo.
No dia seguinte, seguindo o mesmo roteiro de todo dia, passei
pelo local. Nem sinal do cachorro. A moça da delegacia cumprira o
que prometera.
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Minha Querida Aracaju Aflita
6. MEU CACHORRO NÃO MORDE
Fui visitar meu irmão em seu sítio. Ele cria cachorros. Vários deles estavam espalhados em todo canto, cochilando às sombras. Uma cachorra veio para perto de mim e ficou me rondando, rosnando. Ele apressou-se em dizer que ela era mansa demais. Não mordia! Mesmo assim, fiquei de olho. Foi o que me salvou. Quando a cachorra encontrou um espaço, saltou sobre mim, buscando abocanhar minha perna. Desviei o corpo jogando meu irmão contra o animal que ainda o feriu. Se ele não estivesse armado com um facão seria estraçalhado, pois a cachorra mansinha virou uma fera.
Outro irmão, toda manhã vai à praia com seu pitbull. O cachorro é quem o acorda. Só pára de latir quando os dois saem de casa. Ele, segurando a correntinha do enforcador e o cachorro com focinheira de arame.
Outro dia, meu irmão atendeu ao apelo do companheiro de caminhada. É que o cachorro rolava na areia, arrastando o focinho pelo matinho das restingas, distendendo estresses, pedindo para se soltar. Ele entendeu que fosse.
Um casal vinha tranquilo e o cachorro partiu para cima dele. Meu irmão, desesperado, correu atrás dos três e segurou a correntinha do enforcador justo na hora em que o cachorro pulava sobre o homem. A mulher, a essa altura, já mergulhara no meio do canal, mais perto da ilha, lá no fundo. Demorou a aparecer de volta.
xxx
Eu sigo, como todo dia, na minha caminhada maneira pelas areias macias e fofinhas da praia de Atalaia. Aracaju é uma maravilha inesgotável. Praias imensas. Ondas sófregas. Nessa hora da manhã, poucas pessoas andando. Algumas passam em ritmo rápido, outras cruzam comigo e soltam um cumprimento econômico. E, lá na frente, dois rapazes brincam com um grande cachorro peludo. Bem no meu caminho, no meu destino. Tenho medo de animais. É uma cisma nata,
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Antônio Saracura
dessas que não têm cura. O cachorro corre solto pela areia, pegando
um objeto que jogaram bem longe. Retorna e abraça-se com um e outro.
E eu me aproximando. Seria melhor retornar, truncar meu rumo.
Ou poderia subir na restinga e buscar o asfalto longínquo, mesmo aqui,
onde as areias gordas engolem os pés até a metade da canela.
Mas avanço temerário na direção do grupo. Estamos agora
muito perto. Um dos rapazes joga um chinelo na minha direção. Talvez
nem tenha me percebido. Pareceu-me um gesto mecânico. Vejoos,
o chinelo e o cachorro, voando para cima de mim. O que fazer?
Dou uma meia volta brusca para correr para a água que está
próxima, tentando escapar. Mas tranço as pernas, esborrachando-me
na areia. O chinelo e o cachorro me alcançam naquele momento. Protejo-
me com os braços cruzados sobre o rosto, exatamente onde a boca
do cão pretende abocanhar o chinelo, que aterrissa. É um grande cão
de dentes afiados. Os donos gritam ordens, chegando perto. Em pânico,
eu soco o focinho do animal com o braço livre. Alguém puxa a
fera e eu me levanto com o braço sangrando e o corpo trêmulo.
Os donos e o cachorro estão bem perto. Outras pessoas chegam.
Eu preciso reclamar, mas não consigo pronunciar uma palavra.
E ouço muito bem os donos explicarem que o seu cachorro
é manso demais. Não morde ninguém. Mas não aceita ser agredido.
Reage sempre com violência.
E vejo as pessoas passarem a mão na cabeça do animal, afagando-
a, e me olharem enviesadamente, como se eu fosse o mordedor.
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Minha Querida Aracaju Aflita
7. A SACOLA DE LOJA CHIQUE
Estava encalhada na fímbria de areia da praia de Atalaia, beijada pelas ondas enfraquecidas que jogavam macias as últimas espumas e retornavam rápidas, sugadas pelo mar.
Eu ia passando na minha caminhada matinal, a que me dou o direito e o prazer, apesar dos protestos do último sono persistente. O mar estava imponente lá no meio, despencando em marolas macias atravessadas por flechas de sol apontadas na minha direção.
Sob meus pés preguiçosos, as areias infinitas e brancas dessa maravilhosa Aracaju pouco conhecida. As fachadas dos hotéis, lá depois das dunas baixas, faiscavam com os primeiros raios do sol nordestino de verão, encobrindo as mansões enfileiradas nas ruas de trás.
Estaquei agredido! Uma sacola encalhada? Era o único ruído nessa imensidão de vazio. Encontrava-me bem perto, mas apressei o passo na direção. O que conteria?
Lá ao longe, na curva de areia – meu radar natural anotara- despontou um casal vindo para cá. Uma miragem oscilante! Estava tão longe que seus corpos pareciam corpos de criança.
Com ânsia de curiosidade, toquei na sacola. Estampava a logomarca de uma loja chique de um grande shopping da cidade. Com as duas mãos, alarguei a boca amarrada com uma fitinha de ouro. Um cachorrinho peludo estava lá dentro, engelhado, morto, exalando mau cheiro. Uma onda beijou os meus pés e a sacola, balançando-a, querendo-nos puxar para si. Olhei em volta, pensando o que fazer. O casal chegava. Era de verdade! Estava andando agora num ritmo mais forte.
Cavamos um buraco na pequena duna logo em frente. Demos, eu e o casal, uma justa sepultura ao malfadado defunto.
xxx
Parei o meu carro em frente à clínica, na Anísio Azevedo. Chegara cedo demais. Não abriria tão logo! Mantive o motor ligado para
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Antônio Saracura
garantir o ar frio e relaxei, ouvindo Gilmar Carvalho em mais um furo
sensacional. As duas pistas da avenida estavam vazias, nenhum carro,
nenhuma pessoa indo ou vindo. O canal silencioso imprensado no
meio dela carregava os dejetos podres da população inculta para o rio
Sergipe, tolerante, e, depois, para o mar compreensivo.
Eu olhava, sem nem querer olhar, para a porta de uma mansão
no outro lado da avenida. E ela mexeu-se timidamente. Percebi pela
mudança das sombras. Agucei a vista! Agora, a porta abria-se por inteiro.
Uma mulher coloca primeiramente uma perna e a seguir, estica
o rosto para fora. Vasculha a avenida. Depois, com uma sacola pendente
em cada mão, pula inteira para a calçada e caminha na direção
do canal. Pára junto à balaustrada protetora e descansa as duas sacolas
no chão. Só então percebo que muitas outras sacolas, provavelmente
contendo lixo das casas da avenida, estão enfileiradas na beira do canal,
antes e depois da mulher. Talvez hoje seja o dia da coleta de lixo,
penso preguiçoso. Outra vez a mulher me cativa. Ela agora avalia a
redondeza. Sinto seus dois olhos de águia vararem os vidros escurecidos
do meu carro e vejo-os correndo, uma a uma, as janelas de todas
as casas próximas. Em seguida, ela se agacha. E, num movimento ensaiado,
levanta as sacolas, uma em cada mão. E como fazendo uma
oferenda aos deuses, joga-as dentro do canal. Bate uma mão na outra,
talvez sacudindo poeira ou resquícios de pólvora de uma arma deflagrada.
Vira-se para sua casa e atravessa a pista, retornando à paz de seu
lar. Seriam mais dois cachorrinhos assassinados?
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Minha Querida Aracaju Aflita
8. SEM JEITO NEM TREJEITO
Sou uma pessoa idosa. Dou graças a Deus por ter chegado vivo até aqui. Já posso utilizar o caixa especial dos bancos para pagar minhas contas. Se bem que o faça constrangido, pois nem pareço ter essa idade toda e sei que estou atrasando outras pessoas que têm muito mais que fazer.
Esse pequeno preâmbulo foi escrito com o intuito de me apresentar mais adequadamente aos leitores. Que saibam que estou muito mais para um par de muletas do que para os bastões de esquiador.
E vou eu andando solitário – até me sentindo solitário demais- na areia da praia de Atalaia, como em toda manhã. Já tem alguns anos que sigo essa dieta, tentando manter-me fisicamente mais ou menos em forma. Tentando arejar minhas ideias confusas. Das pessoas que cruzam comigo, homens, mulheres e jovens, poucos deixam escapar um econômico cumprimento, muito mais através de um gesto do que mesmo da fala. E seguem o seu destino, deixando-me com minhas rimas escorregadias, com meus planos esvoaçantes. E seguindo o meu caminho também.
Percebi um jeito diferente no rapaz maduro que acabou agora de passar por mim, caminhando na direção oposta, plugado, através de fios, em algum concerto. Cumprimentou primeiro do que eu – tomou a iniciativa-e, depois que respondi com um monossílabo engasgado, vi que me acompanhou com o rabo do olho. Não que eu tivesse olhado para ele e encontrado seus olhos me olhando. Não! Senti apenas que me olhara mais do que devia. Continuei o meu caminho. Mais à frente, parei um pouco e abaixei-me para pegar uma concha que me atraíra na areia. Primeiro eu senti, e depois eu vi mesmo. O rapaz invertera seu rumo e caminhava agora sobre os meus passos, vindo na minha direção. E já estava muito perto. Quando me levantei com a concha na mão, ele já estava ao meu lado. Quando comecei a andar de novo, percebi que caminhava emparelhado comigo. Olhei-o sem virar o rosto, pelo canto do olho. Estava ainda plugado ao concerto e mirava o
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Antônio Saracura
horizonte lá longe. Era um desconhecido, nunca o vira antes, eu tinha
certeza. E assim caminhamos por cem metros, ou mais. Se eu reduzia
ou aumentava a velocidade de meus passos, ele fazia o mesmo. Quando
cruzamos com outro caminhante, percebi que nos cumprimentou
como se fôssemos uma família, dois amigos inseparáveis.
E agora?
Quebrei o gelo, dizendo que o mar estava muito bonito. Ele
deixou cair a fiação e concordou. E depois perguntou se eu andava
todos os dias, se vinha sempre só, se me sentia de bem com a vida, se
ainda dava no couro? Se... se?
E eu fui respondendo, no começo de peito aberto, sem qualquer
desconfiança. Depois, quando as perguntas entraram num mundo
muito privado, com certa relutância. E assim conversando-mais ele
perguntando e eu respondendo – alcançamos a primeira passarela de
madeira. Depois retornamos, pois ambos morávamos na mesma direção,
conforme já confidenciáramos. Mais perguntas, mais respostas
cada vez mais curtas.
Se eu gostava de escutar uma boa música... Se me ligava em
um bom filme... Se ainda namorava... Se eu me sentia solitário... Se...
se?
Finalmente chegamos à portaria de seu prédio. Minha casa era
ainda bem mais à frente, e nada lhe falara sobre onde era. Talvez não!
Ele estendeu-me a mão. Segurou a minha indecisa e a reteve
com firmeza. Queria por todas as forças que eu subisse ao seu apartamento,
para tomar um suco de mangaba, para conhecer seu esconderijo,
para rolar nos almofadões fofos que tinha na sala, para... para... E
não me soltava.
E agora?
Nessas situações, acionada à revelia mesmo, toda a ignorância
da família desde o tempo das cavernas aflora-me e enche não só o meu
coração, mas os espaços internos e os à minha volta, de pura cavalice
bárbara!
Ele deve ter sentido o tempo se fechando. Ele deve ter percebido
o ribombar longínquo de trovões e o faiscar de raios. E o sinistro
ruído de granadas sendo destravadas. E foi afrouxando a mão. Aí pude
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Minha Querida Aracaju Aflita
seguir o meu caminho.
Nem respondi ao cumprimento de um casal idoso – parecia um casal de turistas-que ainda ia, àquelas horas, caminhar na praia. E que ficou reclamando – ouvi ou pensei que ouvi – da falta de calor humano do povo de Aracaju.
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Antônio Saracura
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Minha Querida Aracaju Aflita
9. GREVE DOS APOSENTADOS
Trabalhei sempre em grandes empresas. Em todas fui sindicalizado, mesmo quando exercia cargos de chefia. E sempre fui voto vencido na hora de fazer greve. Tínhamos bons salários, planos de saúde e carreira. Uma montanha de vantagens. Mas os sindicatos precisavam mostrar serviço, retribuir a confiança que lhes fora depositada na eleição. Convivi até com greves, em solidariedade a outras categorias menos favorecidas.
Acabou esta semana a greve dos Correios. Um serviço público prestado por uma estatal cheia de regalias. Um serviço medíocre, danificado a cada ano por duas ou mais paralisações, provocadas por seus sindicatos incendiários, que buscam apenas aparecer. Eu disse medíocre, porque um boleto postado no dia 05 (com vencimento para o dia 10) tem chegado à minha residência sempre depois do dia 12 (dados coletados bem antes dessa greve).
A Petrobrás (quem não gostaria de trabalhar lá?) está ameaçando parar. O forte sindicato dos petroleiros, vitaminado com polpudas contribuições, mobiliza a classe para uma greve geral. Vai fechar os poços, esfriar as caldeiras, furar os pneus de caminhões transportadores. O sindicato mostra, assim, aos eleitores, que é o tal. Pode parar o Brasil, até sem motivo algum.
Estão falando que a Polícia vai também entrar em greve. Será uma greve de repúdio, porque o Governo ameaçou mandar a tropa para a rua. No último concurso para preencher apenas o cadastro de reserva, a fila de candidatos dava a volta em vários quarteirões. Os aposentados (eu e os sindicalistas do meu tempo, aquela velha guarda incendiária) estamos com os rendimentos no rés do chão, devido às correções solapadas que nos impingiram os últimos governos. Até o social Lula! Os meus dez salários de quando me aposentei, para citar um exemplo, hoje estão reduzidos a cinco. Fraciono os comprimidos indispensáveis e rezo para não ser expulso do meu plano de sáude que, inflexível, exige a quitação imediata das prestações em atraso. E a minha imensa categoria (aposentados) não pode parar. Não
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Antônio Saracura
pode fazer uma greve geral, porque já vive parada, inativa, fora do
mercado. Não representaria nenhum transtorno. O Brasil político e
o Brasil econômico nem perceberiam. Mesmo que seja uma greve de
fome, dificilmente sensibilizará o Brasil social. E ainda correremos
um grande risco de estarmos ajudando às Previdências Privadas, ao
SUS oficial a desentulhar suas prateleiras de idosos encruados que teimam
em desafiar os antigos cálculos atuariais. Teriam que morrer aos
setenta e teimam em varar um século.
Os nossos velhos líderes estão cansados, gastaram-se em greve
oportunistas no passado e, agora que há um motivo justo, relutam em
comandar a categoria. Logo quando precisamos de um líder que acredite
no impossível. Desta vez, eu voto a favor!
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Minha Querida Aracaju Aflita
10. OS PRIMEIROS INVASORES
Quando os primeiros consumidores de crack começaram a aparecer em volta da estação da Luz, em São Paulo, eu estava lá. Não consumindo, mas os observando duas vezes por dia. Trabalhava em Santo André e morava no centro de São Paulo. Pela manhã, caminhava pela Gásper Líbero até o meu trem suburbano. O mesmo acontecia no começo da noite, quando retornava. No início, havia apenas um ou outro. Nem a imprensa falava sobre o assunto, nem os policiais que circulavam na área tida como conturbada ligavam para os fumadores. Eles, os craquistas, sentiram confiança e, como plantas daninhas, espalharam-se e cresceram. Hoje é a praga que é. Toda a região entrou em decadência. As lojas se viram obrigadas a sair da área, os prédios se deterioraram. Para resolver o problema, para refazer aquela parte da cidade, são necessários muitos recursos. Muito mais do que dispomos em nosso país sempre carente.
E mesmo que reconstruamos a cidade, como reconstruir a vida dos viciados ou recuperar a dos que tombaram nesses anos todos de relaxamento do Poder Público?
Quando se instalaram os primeiros barracos na beira do mangue do rio Poxim, ao lado do condomínio “Praias de Sergipe”, no Augusto Franco, em Aracaju, eu estava pertinho. Tinha um apartamento no condomínio e tentava vendê-lo. E tive a rara oportunidade-por conta de minha atividade, na época, de corretor de imóveis-de atender a um cliente que disse ser funcionário público e responsável pelo setor de áreas ocupadas indevidamente, ou algo que o valha. Contei-lhe então-como novidade-sobre o aparecimento (ainda embrionário) da invasão. Externei-lhe minha opinião sobre a necessidade de se matar o mal logo, sob pena de nos engolir depois. Ele garantiu-me que acompanharia sua equipe em uma inspeção e “tomaria as providências!”.
Hoje os barracos cobrem uma extensa área, cheia de ruelas tortas, sujas, alagadas. Uma população miserável. Muitos vieram mais por solidariedade ao parente que os mandou avisar. Estariam bem melhor em sua terra. No meio de mães de família zelosas circulam ban30
Antônio Saracura
didos da pior qualidade, aproveitando a fraqueza dos moradores e o
relaxamento do Poder Público. A imprensa brada que, agora, nem a
polícia independente entra na invasão, cada vez mais independente.
Os imóveis localizados no entorno perderam o valor. Quem vai
querer morar com tão perigosa vizinhança? O bairro inteiro foi contaminado.
A cidade inteira prejudicada.
E o meu apartamento? Fui oferecendo descontos a cada interessado
que conseguia atrair para o negócio. Mesmo assim, não fechei
a venda. Aluguei a um baiano que não pagou nem o primeiro mês. E
só o desocupou depois que foi assaltado na porta do prédio e atingido
por um tiro que lhe esfacelou uma costela. O apartamento está fechado
agora. Visito-o uma vez por mês, quando abro as janelas que dão para
o mangue do rio Poxim. Fico alguns minutos vendo o Pantanal fervendo,
cada dia maior. Aquele burburinho! Saio do prédio com o maior
cuidado.
E o funcionário público, aquele a quem avisei do primeiro
barraco construído, acaba de receber uma grande comenda (troca de
afagos compadrescos) – li nos jornais-por sua atuação profícua como
gestor nos cargos importantes que ocupou na administração da cidade.
Comentam até que está sendo cogitado para assumir uma Secretaria
importante.
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Minha Querida Aracaju Aflita
11. O BAR NA PRAÇA
Preciso estudar um pouco para o concurso do banco. Aqui em casa todo mundo estuda. Uns para os concursos, como eu, outros para os colégios. Procuramos falar o menos possível, para não nos perturbarmos mutuamente. É a casa dos cochichos. Moro no centro da cidade, numa praça aconchegante e estranhamente pouco barulhenta. Pelo menos, era!
Hoje à noite é a inauguração do bar-lanchonete que o prefeito mandou fazer na praça, junto com as obras de recuperação, e deu a um afilhado que o ajudou a se eleger.
No transcorrer das obras, estranhando aquele quiosque nascendo, fui saber do que se tratava. Não... Protestei! Tinham que demolir...
Mandaram-me reclamar ao prefeito, que estaria vindo naquela tarde, fazer uma inspeção. Marquei plantão e o homem apareceu com uma pequena comitiva. Aproximei-me e disse-lhe que estava preocupado com um bar na praça. Que me traria problemas. Morava na casa em frente. O prefeito olhou-me de cima de seu poder e sinalizou a um assessor, que estava ao lado, para tomar conta de mim, e foi saindo com o resto da comitiva, apertando a mão de um e de outro. Mas eu continuei ao seu pé, seguindo seus passos. Vendo que não me descartara, disse-me que confiava em mim como cidadão esclarecido, que eu saberia administrar para ele qualquer problema que houvesse. E empurrou-me, abrindo caminho, dando por encerrada a sua vistoria.
Depois da bênção do vigário, as mesas de plástico avançaram pela rua, pelos canteiros da praça. Até a minha calçada.
Os tomadores de cerveja conversam, gesticulam, na maior algazarra. Um carro abre a porta traseira e vomita um axé dobrado, estufando meus ouvidos e fazendo trepidar os dois pinguins de minha geladeira. Como estudar, assistir à televisão, escutar alguém aqui dentro de casa? Vou lá reclamar. Recebo uma esculhambação do dono e uma vaia dos fregueses, já meio bêbados. Tento agora, ao telefone, notificar
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Antônio Saracura
a polícia (quase gritando) do meu problema, pedindo providências.
Faz uma semana que o bar funciona. O som dos carros começa
já no final da tarde, indo até alta madrugada. A polícia veio duas vezes
nas mais de vinte que chamei. Advertiu o dono do bar. Mas logo que
sumiu na esquina, o volume das caixas foi aumentado sem pena.
Todos aqui em casa me cobram uma solução. Escrevo cartas
para o prefeito. Volto a reclamar com o dono e ele ri sonso. Diz-me que
devo estar exagerando... Sinto-me inútil.
Hoje faz um mês que não consigo estudar à noite. Estuprado
pelo som dos carros no bar. Pela algazarra! O prefeito não deu retorno
às minhas cartas, nem me recebeu quando alisei cadeira na recepção
de seu gabinete. A polícia pergunta-me, ao telefone, se não sou “o
chato da praça” mais uma vez e simula linha cruzada, derrubando a
ligação que demorei tanto obter.
Eu tinha uma boa casa de morar. Tinha uma praça, onde ficava
com meus filhos conversando, passeando, revisando os pontos estudados,
por onde empurrava o carrinho com meu netinho que ria contente
nas tardes amenas. Onde conversava, nas bocas de noite, com meus
vizinhos, que sempre apareciam.
Tenho apenas, agora, este bar imenso, que toma todos os espaços,
até dentro de mim.
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Minha Querida Aracaju Aflita
12. BICICLETAS BARULHENTAS
Estava em visita ao Poeta (Santo Souza), que mora na rua Rio Grande do Sul, no Siqueira Campos. Ouvia-o enlevado recitar seus sonetos de amor do começo da carreira. Cada um mais bonito, cada um mais celestial. De súbito, um barulho ensurdecedor estourou na rua e veio aumentando cada vez mais na nossa direção. O poeta largou a brochura de inéditos e olhou-me com olhos enormes. Levantei-me assustado, precisando escapar. Achei, num primeiro momento, que uma parte da casa ruía. O barulho, agora ajustado por uma mão invisível, transformara-se numa música chula, chiada, mas ainda ensurdecedor. Corri à porta da casa, a ver o que era. O poeta arrastava-se atrás de mim, mais para me tranquilizar do que para saber do que se tratava.
Ele já sabia.
Era uma simples bicicleta pilotada por um rapazinho magro, equipada de caixas pretas de som que estremeciam. Como pode? Pelo menos se fosse uma carreta de trio elétrico...
Mas era mesmo uma simples bicicleta. Tratava-se de um pequeno empresário que ganha o seu pão fazendo propaganda dos produtos ofertados nas lojas da grande rua. E, para chamar a atenção do público, quando vai dar início a um novo anúncio, toca músicas apelativas. Apesar de me incomodar demais, algumas garotas que passavam fardadas ensaiavam passos de danças, acompanhando o ritmo. E riam faceiras.
Agora a bicicleta (é um ser vivo e monstruoso) começou a falar sobre certo desengraxante, que custa apenas um Real e que deixa o chão de sua oficina brunido.
Olho para o poeta, que já chegou também à porta. Ele fala alguma coisa, mas não consigo escutar. A bicicleta parou bem em frente e o seu condutor travou o tripé, entrando numa lanchonete para cuidar de um novo negócio ou comer um pastel. Quem é que sabe?
Daí a pouco, quando a bicicleta seguiu rua acima, assombrando outros moradores, o poeta conseguiu me dizer que todo dia é desse
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Antônio Saracura
jeito. E mesmo que se refugie lá no fundo da casa, as bicicletas de
propaganda o alcançam, derrubando rimas, mudando em pesadelos os
sonhos puros.
Fiquei na casa do poeta mais meia hora. Ao sair, circulei pelo
grande comércio do Aribé, vistoriando os ruídos. Encontrei outras bicicletas,
algumas mais humildes, mas tão barulhentas quanto a que estacionou
em frente à casa do poeta. E encontrei também-imaginem?
Encontrei um homem-som, um homem-algazarra. Este não
tinha uma bicicleta. Mas fazia também muito barulho. Uma grande
caixa preta estava fixada em sua cabeça, como um barrete sacerdotal
de quatro bandas, por onde saíam rajadas sonoras. Outra grande caixa
estava presa às costas, deixando-o parecido com uma japonesa medieval,
com tiras de couro passando pelo peito, onde se localizava o
controle da parafernália. E circulava pelas calçadas, forçando os transeuntes
a descerem para a pista de rolamento. Eu esfreguei os olhos
pensando que dormira. Mas não! Era real.
O bairro inteiro estava em polvorosa. Como um cidadão pode
estudar, resolver uma questão matemática, fazer um poema, confidenciar
sua paixão, por aqui? Apresso-me, sinalizando para um táxi. Voume
embora para o meu sítio no meio do mato, esperando que não
tenham me furtado a televisão e as coisas de valor. Está acontecendo
lá uma grande onda de assaltos.
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Minha Querida Aracaju Aflita
13. A CIDADE GRATUITA
Se eu precisar colocar uma faixa sobre o muro de minha casa, informando às pessoas que passam pela rua que vendo flores...
Se eu quiser fixar um grande outdoor no meu terreno da beira da pista, anunciando o que bem entender...
Se eu quiser anunciar um emagrecedor e utilizar para isso os vidros do meu automóvel, desde que não prejudique a visão ao entorno...
Se eu quiser parar o meu carro à frente de uma loja ou de uma residência, deixá-lo ali a semana inteira, enquanto vou para o interior vadiar...
Se eu quiser sair, rua acima, rua abaixo, vendendo jarros de barro, flores do campo, peixe fresco, aipim arrancado pela manhã, caixinhas de morangos, cachos de uva, pencas de banana...
Se eu quiser andar pela cidade com o meu carro-boate, anunciando algum produto ou apenas tocando a música de que gosto...
Se eu quiser arrastar meu reboque elétrico envenenado, com o som ao máximo, a ponto de disparar os alarmes dos carros estacionados e balançar as casas do bairro, rachando as paredes das construções mais fracas...
Se quiser e fizer, não tem nenhum problema aqui em Aracaju.
Corro apenas um risco remoto. Alguém sentir-se prejudicado e chamar a polícia. Mas é pouco provável que isso ocorra. Primeiro, porque nessa cidade ninguém tem coragem de protestar, reclamar de algum incômodo. Mesmo muito agredido, não diz nada. Prefere baixar a cabeça e se afastar da arena. Faz parte da formação, da tradição mansa do nosso povo. E, segundo, chamar a polícia... Mesmo que a chame e que ela acredite não ser um trote dificilmente virá. Isso eu provo, porque já aconteceu comigo.
Só vou citar um caso de quando eu morava numa praça do centro. O quiosque em frente à minha casa tocava toda noite um som ensurdecedor. Mesmo depois de ter ido embora o último freguês, depois das duas da madrugada, o som permanecia ligado em alto volume,
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Antônio Saracura
para entreter o funcionário na faxina-e me indignar mais ainda pela
demora da polícia em atender ao meu chamado, feito no começo da
noite.
Mas, voltando ao absurdo da permissividade...
O poder público tem que cobrar, tem que disciplinar efetivamente
o uso dos bens públicos. Será que a alma frouxa do povo tomou
conta também dos gestores da cidade?
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Minha Querida Aracaju Aflita
14. CÃO DE GUARDA
Vinha andando devagar, de vista baixa, ruminando minhas coisinhas bestas, quando senti meu celular vibrar no bolso. Precisava atender. E, mecanicamente, parei junto ao muro de uma das muitas casas que beiram a rua por onde eu andava. Encostei-me ao meio-muro, pois este tinha uma grade de ferro vazada complementando-o. Abri o telefone. Era minha esposa. Falava da conclusão a que chegara sobre um problema doméstico de pouca importância.
Um rosnado raivoso. A grade de ferro estremeceu. Meu pescoço foi envolvido por uma rajada de gosma e garras afiadas trucidaram minha camisa na altura do ombro. Instintivamente, dei um pulo de onde estava e, ao descer do voo, pisei bem na borda da calçada, desequilibrando-me. Vi sombras me carregando pelos braços, tentando me colocar em pé.
E ouvia latidos de cachorro acuado, que me lembraram os latidos de Estopa, personagem de Parto da Vaca Rajada, um dos contos do incomparável escritor itabaianense, Vladimir Souza Carvalho.
Queria correr, mas minhas pernas estavam moles, nem podiam com o meu corpo. Sentia-me desmanchando...
Mas não morri! Pelo menos acho que não. As pessoas me deitaram numa sombra e tentaram, de todas as formas, me reanimarem, até que chegasse o carro do Samu. Acordei a tempo, nem precisei ir ao Pronto-Socorro. Fui medicado ali mesmo e intimado a procurar depois o meu médico, para uma avaliação. Uma senhora de branco, que cuidara de mim o tempo todo, e eu a vira circulando como uma nuvem a minha volta enquanto estivera meio inconsciente, mostrou-me o local onde eu caíra, tendo ao fundo o muro e a grade de ferro.
O cachorro feroz não estava mais lá. Disse-me que os donos o levaram para o fundo da casa, acossados pelas pessoas que pararam para ver o homem mordido (eu!). Informou-me que trabalhava na clínica em frente e que estava saindo do trabalho justo quando eu fora atacado.
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Antônio Saracura
-Acho que o senhor devia processar os donos do cão. Várias
pessoas ou foram arranhadas ou tomaram grande susto com as arremetidas
da fera, que fica se estrumando nessa área da frente da casa o dia
todo.
Despedi-me da boa mulher e caminhei até a casa onde morava
o cachorro. Queria bater à porta. Mas não sabia ao certo o que dizer
aos donos. Xingá-los? Para receber as xingas de volta e em dobro...
Ameaçá-los? Para depois não ter coragem de cumprir as ameaças...
Ir à polícia? Processá-los? E passar o resto dos meus dias nos
tribunais, gastando com advogados o que pouco tinha, e vendo os acusados
provarem, ao final, que eu fora o único responsável pelo acidente.
Encostara-me no muro, não fora empurrado por ninguém.
Segui para minha casa ruminando. Chegando, eu já sabia o que
fazer. Prepararia um bolo para o cachorro. Um bolo de veneno.
Passaria pela frente da casa do cachorro, verificaria se não havia
testemunhas e, disfarçadamente, deixaria escorrer para o lado de
dentro do muro a minha bomba fatal. Mas o cachorro assassino, o
mesmo que me atacara, teria que estar lá para comê-lo.
Já faz um mês que passo todos os dias pela frente da casa. O
cão sumiu-se. Conversei com a mulher que me socorreu e ela também
nunca mais o viu. O bolo de veneno, mesmo sendo refeito diariamente,
está empesteando minha sacola com um cheiro de defunto. E está
ficando íntimo demais, perigoso até para mim.
Resolvo, então, conversar com os donos do cachorro. Uma senhora
atendeu-me à porta. Perguntei-lhe sobre o cachorro-onde estava?
Contei-lhe que fora sua vítima dias atrás e gostaria de encontrá-lo
para me vingar. A mulher sorriu! E contou-me que seu esposo, naquele
mesmo dia, ao ver-me desacordado à sua porta, levara o cão para os
fundos da casa e o sacrificara.
-O senhor chegou tarde! – sorriu meigamente.
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Minha Querida Aracaju Aflita
15. ALGUÉM PARA CORRER COMIGO
Um escritor israelense, David Grossman, construiu um eletrizante romance-editado no Brasil pela Companhia das Letras em 2005, que tive a ventura de ler e que possui o mesmo nome desta crônica. Ele trata de vários temas, mas um dos principais é a exploração dos artistas e dos mendigos de rua por uma máfia que se veste de protetora dos mesmos. E enriquece com a subtração das gorjetas e, como toda atividade econômica, agrega outros subprodutos rentáveis. Nesse caso, a venda de droga, furtos a incautos, dentre outros.
Aqui em Aracaju parece-me que acontece parecido.
A mendicância não é, como me parecia antes, uma atividade individual, onde o pedinte sai para o trabalho por conta própria e o fruto colhido lhe pertence. Pelo contrário, os mendigos das ruas de Aracaju, ou pelo menos uma parte, trabalham como funcionários de “empresas”, que os exploram, como eles próprios (os mendigos) fazem com as pessoas de boa fé.
Eles têm patrões. E alguns desses patrões possuem muitos empregados.
E, do mesmo jeito que no livro, esses empregados-mendigos circulam alternadamente pelas cidades, pelos cruzamentos, para não darem muito na vista. Daí é que sempre está aparecendo um novo aleijado, um novo pedinte de roupa imunda nas esquinas por onde passamos. Obedecem a uma estratégia de logística, que suas cabeças simplórias nunca poderiam traçar. Tem que ter alguém por trás.
Era uma hora da tarde e eu estava de plantão na Imobiliária, em frente ao cruzamento mais movimentado da cidade. Nenhum cliente. Apenas o barulho, lá no estacionamento ao fundo do prédio, de mendigos comendo quentinhas. Todos os dias era a mesma coisa. Eu dormitava modorrento, enquanto o grupo mastigava e discutia seus problemas. De súbito, gritos de socorro! Pulei da cadeira e entreabri a cortina que me permitia espionar os mendigos sem ser visto por eles.
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Antônio Saracura
Um senhor de idade, com roupa ensebada e chapéu de baeta
gasta, que era meu conhecido de vista e que diziam se chamar Namorador,
estava sendo espancado por uma mulher grande e gorda.
Os outros mendigos (cerca de dez) permaneciam sentados, indiferentes.
Namorador ajoelhou-se de mãos postas como se rezasse
diante de Deus, jurando que entregara todo o dinheiro arrecadado, não
tinha mais nada. A mulher agora lhe batia na cabeça, no rosto. O velho
chorava, tentando se defender com as mãos. Mais chicotadas! Tive o
ímpeto de esmurrar o vidro, para impedir o massacre, mesmo correndo
o risco de ser espancado também. Nem sei por que não o fiz. A gorda
agora estava sobre o homem, que se estatelara ao chão e, metendo a
mão por dentro das calças dele, arrancou uma mochila. Uma mochila
com dinheiro. Vibrou-a no ar, como se a esfregando na cara dos outros
mendigos estupefatos. E voltou-se para Namorador, que chorava com
o rosto ainda sujo das britas do estacionamento da imobiliária:
-Hoje você vai dormir ainda no barracão. Mas amanhã, mando-
o de volta para Alagoas! Nunca mais venha atrás de mim, seu ladrão
safado!
Ainda bem!
Apenas uma imitação de Pessach Beit Halevi, do Albergue dos
Artistas, da Jerusalém de David Grossman.
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Minha Querida Aracaju Aflita
16. MANUSCADA COM CHUMBINHO
Eu ia andando pela calçada em frente ao Mercado Municipal de Aracaju, meio-dia, quando ouvi um senhor de idade, anunciando a venda de “chumbinho”. Sei que chumbinho é o nome popular de um potente veneno para matar ratos, cachorros e gente. Sei que é a arma utilizada em 80% das tentativas de suicídio, e com alto índice de sucesso. E sei que é muito perigoso, também, por não ter cheiro nem gosto e, dessa forma, poder ser ingerido sem nenhum bloqueio do cérebro, por mais vigilante que se esteja. Sei que a venda fracionada do chumbinho é proibida, se bem que as lojas agropecuárias o vendem em embalagens grandes, como agrotóxico, a ser utilizado nas plantações de algodão, batata, café, cana-de-açúcar e até feijão.
Ouvi o anúncio e segui em frente.
Mais adiante, na mesma calçada, outro ambulante mostrou-me, na mão aberta, alguns papelotes. E falou a mesma palavra trágica.
Como estava bem à sua frente, notei que ele trazia dependurada no pescoço, estacionada na altura da barriga, uma pequena vasilha cheia de amêndoas secas. Pareciam gergelim e noz-moscada. Parei. Ele então fechou a mão, talvez desconfiando (ao avaliar melhor), que eu pudesse ser da polícia. Desceu a mão até a vasilha e enterrou os papelotes de chumbinho por baixo das amêndoas. Percebera que eu vira o veneno e, mais pelo hábito da profissão marginal que exercia, tentara escondê-lo. Foi um momento apenas de medição de forças. Por fim, vendo que eu não oferecia tanto perigo assim, falou:
-Vai um gergelim? Um Real! Tosse, dor, ciúmes...
-E o chumbinho? Quanto custa?-perguntei.
Estava encurralado e não tinha alternativa. Sentiu que eu era o dono do jogo e entregou-se:
-Tenho do melhor! A última refeição! Vai quantos pacotes?
E afastava as amêndoas, descobrindo os papelotes de chumbinho recém-escondidos, fazendo-os deslizarem para a mão e esticando-a para mim:
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-Um Real apenas! Comeu, morreu!
Eu não queria comprar nada. Fora envolvido na situação. Estava
apenas muito intrigado por venderem, numa mesma cesta, um
perigoso veneno e aquelas amêndoas que minha mãe usava para fazer
seus chás milagrosos. Mas senti que precisava falar alguma coisa:
-Agora eu não sei mais qual deles vou querer. Para falar a
verdade, também não sei, depois da mistura que você fez aí, se esse
chumbinho não amansou com o remédio. Ou se o gergelim não vai me
matar como a um rato, asfixiado. Obrigado de qualquer jeito!
O homem olhou-me intrigado. Não entendeu ou se fez de desentendido.
Continuei o meu caminho, recordando que sempre ouvira
os vendedores de chumbinho nas feiras livres, nas vizinhanças do mercado,
nos locais onde andam as donas de casa. Só nunca pensei que
os mesmos vendedores vendiam também remédios para os males do
povo pobre, como gergelim e noz-moscada.
Não estaria aí uma explicação para algumas mortes “de repente”
que acontecem de quando em quando?
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Minha Querida Aracaju Aflita
17. AS FEIRAS LIVRES DEMAIS
Ontem foi dia de feira aqui na minha rua. A feira-livre semanal.
Livre demais. Indomável. A feira termina em torno das duas da tarde, quando sai o último retardatário. Fica aquela bagaçada: intestinos apodrecidos de peixe, couros inchados de frangos de granja, lascas recusadas de toucinho de porco, ossos hercúleos de boi ainda com alguma carne entranhada, tomates pisados... Depois, já à noite, chega a turma da limpeza. Varre, ajunta, enche galinhotas de detritos... E o caminhão-tanque jateia água imprópria para o consumo, espalhando o lodo miúdo, grudando-o nos muros das casas, incrustando-o sob o mato rasteiro das calçadas.
E agora, neste domingo bem cedo, eu chego ao trecho da feira de ontem–izinho ao meu-sentindo o cheio de carniça por perto. Estou iniciando a minha caminhada de quase toda manhã. O sol ainda não saiu. Dois ratos enormes – que por aqui chamam de gabirus-roem e roem a parte de cima de um toco de madeira. Estou na área do açougue. Sei, porque o chão é engordurado, ensebado. Outro toco está mais adiante, a poucos passos do primeiro. Uma família de ratos desce dele correndo e dispara na direção de um bueiro lá perto de minha casa. Esses tocos de madeira-grossas toras roletadas, tocos de marchante-vão ficar a semana inteira aqui sobre a grama. Seus donos chegarão, outra vez, à boca da noite da próxima sexta-feira com os quartos de boi. É em cima deles que os machados zoam, que as serras serram, separando as peças, partindo os ossos, dividindo os pesos. Para o povo ingênuo do meu bairro comprar e comer. Feiras livres demais. Por que assim tão livres, instaladas no meio das ruas sem a mínima infra-estrutura sanitária? Impossível de organizar, de controlar, de fiscalizar. Colocam-se banheiros químicos – quando colocam – mas não deixam uma torneira de água com sabão para os usuários sequer lavarem as mãos. Mercadorias são expostas em cima de lastros de ferro que nunca foram desinfetados e que serviram de cama para os próprios feirantes na noite da véspera.
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E como sofrem os moradores da rua premiada com a feira livre...
Há algum tempo, as barracas foram descarregadas no trecho de
minha casa, em vez de o serem no lugar antigo, onde a feira sempre
acontecera. Intrigado, fui perguntar o motivo. Os descarregadores me
disseram que os moradores do antigo local haviam feito um abaixo
assinado – ninguém convive bem com a feira-e o chefe resolveu transferi-
la para outro trecho da rua. O meu trecho, o trecho onde moro, que
tem à sua frente uma grande baixada ainda sem drenagem, uma lagoa
enorme. Era inverno e chovia muito. E a lagoa transbordou, inundando
a rua. A feira foi realizada dentro da água contaminada, pois os esgotos
de dois velhos condomínios historicamente alimentam também a lagoa.
Um monte de melancias bloqueou minha garagem e eu precisava
sair com o carro, com urgência. Depois que o dono da mercadoria foi
localizado e deslocou as frutas para outra poça d´água, vi a rua entupida
de cestos, de engradados, de vendedores de chumbinho e de filmes
piratas. Eu não podia mais avançar nem retornar para a minha garagem.
E todos me ameaçavam, alguns até com impropérios. Só pude
recuperar o carro quando a feira acabou. Estava crivado de mossas e
imundo. Os feirantes o apedrejaram com produtos de descarte: batatas,
tomates, até bandas de melancia. Como vingança.
Passei a semana toda tentando falar com o tal chefe da Prefeitura,
o que mandou transferir a feira. Quando ele viu que não se livraria
de mim, atendeu-me-mas muito mal-dizendo que a rua era pública
e que ele, como gestor da coisa, colocaria a feira onde quisesse.
Choveu ainda a semana inteira. A feira foi realizada à minha
porta outra vez. Chamei todos os jornalistas da cidade. Os jornais escritos
e os telejornais mostraram fotos e filmes de mocotós sendo lavados
na lagoa imunda, alfaces borrifadas com coliformes fecais, e, ainda,
pessoas acometidas de disenterias, que alegavam terem consumido
produtos comprados na feira do último sábado.
Continuou chovendo a semana inteira. A lagoa fedia, talvez
devido também aos dejetos das duas feiras passadas. O prefeito veio
ver a situação, na sexta-feira pela manhã, antes da chegada dos caminhões
com as barracas. Estava acompanhado de seu estado maior,
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tendo à frente o chefe abusado que me destratou. Eu me entranhei na corriola.
Graças a Deus, graças à chuva, graças à imprensa, esses tocos de marchante não estão descansando hoje à minha porta.
Mas qual a diferença?
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18. MEU PLANO DE SAÚDE
O oftalmologista apenas aumentou o grau dos meus óculos, mas a secretária mandou que eu assinasse uma lista enorme de formulários. E naquela vez em que me internaram, atestei que tomara soros, vitaminas e antibióticos, quando apenas aguardara o resultado dos exames. O dentista fez uma obturação no meu molar, mas cobrou de meu Plano de Saúde uma reforma completa, com a construção de canais, pontes e coroas. Minha esposa teve parto normal, mas assinei a autorização para pagamento de anestesista da cesariana virtual. E quando o médico não pode vir ao consultório? A secretária, que já me fizera assinar as guias do Plano de Saúde, disse-me que apenas o médico poderia devolvê-las. A dor de cabeça sarou logo que saí à rua e nunca mais voltei lá. Dias depois, cobraram-me (e ao meu Plano de Saúde) a consulta e vários exames. Minha filha já estava na mesa de cirurgia para lhe arrancarem a rótula do joelho, quando desliguei a energia e quebrei o gerador da clínica a machado. Ela não tinha nada, apenas uma farpa obtida quando passava junto à ruma de lenha posta na calçada da padaria lá do bairro.
Vivo em guerra com o meu Plano de Saúde. As prestações aumentam a cada aniversário muito mais que os ínfimos reajustes de minha magra pensão.
Fui reclamar aos gestores. Mandaram-me entrar na Justiça e, ao mesmo tempo, me garantiram que eu perderia a causa, pois os melhores advogados do País trabalham para eles. Corri às instâncias maiores, demonstrando minha indignação, e elas me sugeriram pedir demissão do Plano. Entrei em parafuso: “Paguei durante trinta anos sem utilizar nada e agora, que preciso dele, querem me descartar”?
Os Planos de Saúde merecem as estocadas que recebem. Se massacram, recebam o troco. Ação gera reação. É a lei natural. Se não o faço pessoalmente, os hospitais e os médicos o fazem por mim.
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Sinto-me vingado. Eu não mato, mas é como se tivesse mandado
matar. Esse Plano não é meu parceiro. É a morte que procura me
levar antes, para se livrar da carga que represento cada vez mais.
Trata-se de um inimigo! Por que iria me preocupar em protegêlo,
conferindo cada serviço que autorizo pagar?
Eles (os Planos de Saúde) mantêm caros executivos para fiscalizar,
evitar a cobrança de serviços-fantasma, mas as clínicas e os
médicos, por outro lado, ensarilham as melhores armas para anular o
primeiro esforço. E, assim, cada um dos lados investe mais do que o
outro. Computadores, auditores, advogados, cursos no exterior, diárias,
régios salários, polpudas comissões, prêmios fabulosos. Os aviões
executivos cruzam os céus do Brasil e do mundo todo. Dinheiro
arrancado de bolsos sacrificados mantém mais essa inutilidade capitalista
funcionando.
E o governo relaxou de vez com nossa saúde, achando que os
planos assumiram a responsabilidade, da mesma forma que relaxou
com a educação, achando que o ensino privado é capaz de substituí-lo,
e com a segurança, apenas porque se acostumou a relaxar (parodiando
o poeta Mayakovsky).
E eu, como fico no contexto?
Que saudade eu tenho do tempo em que meu pai negociava
com o médico o valor de sua operação de cataratas e com o dono do
hospital a sua internação por dois dias.
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19. OS DONOS DAS ARMAS
Três profissionais me atemorizam muito: os padres, os advogados e os policiais. Aviso logo que não devo promessa, não tenho nenhuma questão aberta, pago meus impostos em dia e não incorri em nenhum crime. Penso que não! E sei que os três são, apesar desse meu medo, necessários e até indispensáveis em certas ocasiões.
Tentarei, ao meu modo, dizer por que os temo. E adianto que o que mais me assusta neles não é o poder que têm, mas o poder que mostram ter, que pensam que têm.
Os padres desfrutam da intimidade de Deus, podem salvar a alma, aquela nossa parte nobre, que não apodrece. São os únicos que sabem o caminho do Céu, e mesmo que não saibam, agem como se soubessem. Lá na Itabaiana da minha infância, nas santas missões dos frades, todos nós éramos induzidos a comprar velas e caixas de fósforos, bentos. Apenas seus fósforos acenderiam. Apenas suas velas alumiariam quando o mundo acabasse em escuridão. E a data marcada do fim do mundo estava próxima. Não é para se ter medo não?
Os policiais têm em suas mãos o poder das armas que matam e das provas que prendem. São eles que apuram (ou geram) as provas para o juiz condenar. Quem pode parar uma bala disparada? Quem pode rasgar um processo iniciado? Cidadãos apanham ou são presos-e até perdem a vida-sem motivo claro. Apenas estavam no lugar errado ou se encontraram com o policial errado.
Os advogados conhecem as leis mais escondidas, as que salvam ou que condenam. E não é necessário mais que a aplicação do rigor da lei para arrasar alguém. São os advogados que manipulam esse emaranhado, muitas vezes (quase sempre) do jeito que querem. Dominaram e, agora, deitam e rolam. Uma simples vírgula subentendida decreta uma condenação. Há muitas pessoas condenadas ou absolvidas, mais pela esperteza do advogado do que pelo crime cometido ou não.
Das três profissões, a única que vem perdendo poder é a de padre. O povo, no seu segmento mais culto, não mais se assusta com o fogo do inferno. De tanto ser prometido e não cumprido (nenhuma
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testemunha retornou ainda do além), poucos ligam para as ameaças de
padres.
Eu trabalho com aluguéis. Criei minhas regras de sobrevivência
na profissão: não alugo imóvel a advogado, a padre (pastor) ou a
policial. E das vezes em que vacilei-deixei-me iludir pelas recomendações
de amigos-paguei caro. Além de não receber a maior parte dos
aluguéis, tive que pagar contas atrasadas, depois de muita luta para recuperar
o imóvel. Ainda respondo a processos na justiça, por desacato
a autoridade, ou infração a algum artigo obtuso da lei do inquilinato,
ou por ter usado o Seu nome em vão.
Meu pai (que me introduziu no ramo, e já faleceu) não se cansava
de maldizer o Padre que lhe pagou os últimos aluguéis com indulgências:
-E nem me deu documento! Como vou poder mostrá-las a São
Pedro, quando chegar à porta do céu?
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20. UM SÍNDICO IDÔNEO
Na falta de um bom gerente disponível e eu estando muito ocupado na época, entreguei minha roça de bananas para o macaco Zié tomar conta. Zié morreu antes de completar um ano no cargo: gordo, inchado de comer banana. De cada cacho que colhia, uma penca reservava para si. Alguns cachos, Zié comia inteiros.
O último síndico do prédio onde moro saiu corrido do cargo. Depois descobriram que ele nem era proprietário. O apartamento que lhe deu cobertura na eleição pertencia a um parente longe. Deixou apenas móveis podres e um rombo enorme nas contas.
As faturas dos serviços públicos eram autenticadas numa oficina instalada na sua área de serviço, tardiamente descoberta. Os fornecedores apresentaram termos de compromisso, laudos de negociação.Nunca receberam um tostão. Estão batendo à nossa porta com ameaças. Isso aqui está um inferno!
Quem quer ser o novo síndico?
Nenhum dos esteios do condomínio, idôneos reconhecidos, acorreu à convocação. Os idôneos falaram que não tinham tempo, pois suas empresas os ocupavam até tarde da noite. Ou que eram estressados e não queriam morrer numa conturbada reunião (todas são) onde o respeito mútuo inexiste. Por fim, quando as esperanças já se esgotavam, apareceu um candidato, alegando que toparia a missão, no sacrifício, pois alguém tinha de fazê-lo. Era um morador cuja real ocupação ninguém conhecia, apenas a que dizia ter: “Trabalho com vendas”.
As mulheres, sempre mais cordatas, foram contra:
-Um candidato sem nenhuma história? Será como mergulhar no vazio!
Mas não apareceu outro e o homem foi eleito, inclusive com os votos femininos. A sua primeira medida foi aumentar o valor da taxa de condomínio, pois precisava pagar as contas em aberto. Passava o
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tempo todo em demoradas reuniões, renegociando as dívidas antigas e
protelando as novas. Seis meses depois, desapareceu. O apartamento
em que morava foi tomado pelo banco, nunca pagara uma prestação.
E também nunca pagou nada da antiga dívida do condomínio
nem da dívida feita por sua administração.
E, como não poderia ser diferente, outra vez procuramos um
novo síndico para o condomínio. O único interessado que apareceu até
agora, dizendo ser muito honesto, mudou-se há menos de um ano para
cá. O que se sabe sobre ele, é o que nos disse na última reunião:
-Sou pastor de almas.
Um dos moradores, evangélico xiita, é o seu cabo eleitoral e
fala que a igreja dele promove cultos concorridos todos os finais de
semana:
-Nunca fui lá, mas comentam que ele faz milagres.
Queríamos apenas um candidato idôneo e, pelo jeito, teremos
um síndico santo. Também, depois de tanta tempestade, não é possível
que ainda venha outra.
Ninguém suportaria.
Será que não?
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21. PEIXINHOS E PINTINHOS
Tenho ido a alguns aniversários de guris, acompanhando minha neta (que é a convidada) e, escandalizado, trago lembrancinhas vivas para casa. Nesse a que fui hoje, o brinde distribuído foi um peixinho, enclausurado num pequeno saco de plástico transparente cheio de água. Cada criança recebeu um.
Quando retornávamos para casa, o saco de água do peixinho de minha neta estourou no carro, molhando os bancos, emporcalhando tudo. E o seu habitante desapareceu misteriosamente. Estabeleceu-se a maior confusão no banco de trás, forçando-me a parar no primeiro espaço para ajudar a localizar o peixe fujão. Vasculhamos todas as reentrâncias e nada. O peixe não podia estar mais conosco! Como paráramos às margens do rio Sergipe, que desemboca portentoso no oceano mais à frente, sugeri que o peixinho poderia ter voado para a água.
Apesar de parecer inverossímil, porque os vidros do carro estavam fechados, era o que eu tentaria fazer se estivesse no seu lugar, sabendo que, se não pulasse no rio, minhas horas de vida estariam contadas. Minha filha não gostou nada do que sugeri-e especialmente minha neta, que ameaçava entrar em prantos. Foi aí que encontramos o pobre condenado animal: não tinha caído no piso do carro como imagináramos nem voara para as águas do rio Sergipe como cheguei a garantir. Na sua fuga acidental, quando o saquinho estourou, aterrissou dentro na bolsa entreaberta de minha filha. Só foi descoberto ali porque o celular dela pareceu vibrar. Ao tatear o interior da bolsa, procurando o celular para atender a chamada, seus dedos resvalaram no peixinho que se debatia. Recuperado, apresentava sinais evidentes de óbito próximo, o que veio a acontecer ali mesmo. Tivemos que jogá-lo pela janela um pouco mais adiante. Pena que não estávamos mais à beira do rio, onde poderia encontrar uma catacumba bem mais coerente com sua condição de peixe.
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Antônio Saracura
Em outro aniversário, dias atrás, o brinde distribuído foi um
pintinho colorido. Na mesma semana, o de minha neta fedia no saco
de lixo que o caminhão se esqueceu de pegar.
Esse costume de presentear os pequenos sanguinários romanos
com pintinhos, peixinhos, tartaruguinhas me parece uma lamentável
sacada de algum promotor de festas equivocado. E o pior é que a moda
pegou.
Tento agora, já em casa, convencer minha neta do que penso.
Tempo perdido, ela continua inconsolável pela perda do seu
peixinho. E sua mãe (minha filha) olha-me como se eu fosse de outro
planeta, questionando minhas ideias esquisitas:
- “Só o senhor não vê a beleza de um peixinho nadando! Por
mais curto que seja o tempo, vale a pena tê-lo! Quanto a morrer, todo
mundo morre um dia!”
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22. PEDIDO DE SOCORRO
Dona Mara mora sozinha em um apartamento que lhe alugo num condomínio aqui do bairro. Ela é uma pessoa tranquila, passa o dia lendo, escrevendo versos. É poeta. Pelo menos, foi o que me confessou quando assinamos o contrato. Os moradores do prédio e do andar do apartamento-que conheço de ouvir falar-são pessoas de nível.
Nos dois apartamentos em frente ao meu, moram uma enfermeira, também só, e, no outro, ao seu lado, um casal bem remunerado.
No apartamento ao lado do meu, mora uma desquitada de um petroleiro com um filho de sete anos. Mudou-se há poucos dias. São quatro apartamentos apenas no andar.
Eu nem precisaria ir ao meu apartamento, não tinha nada específico a tratar com meu inquilino naquela tarde. Os pagamentos caiam no dia certo em minha conta. Mas, já que estava no prédio, resolvi subir, apenas para confirmar a satisfação de dona Mara. Subi as escadas, cuidadoso, tanto para não perturbar o silêncio como para saboreá-lo. Postei-me à frente da porta e fiquei com pena de tocar a campainha, para não gerar barulho. Mas toquei.
Dona Mara abiu a porta e pediu-me para entrar. Apontou-me o sofá e foi lá dentro, indicando-me que voltaria logo.
Agora, sentava-se à minha frente e inclinava-se para um lado, ligando o fio de um gravador que fora buscar. E falava:
-Gostaria muito que dispusesse de um tempo para ouvir essa fita. Trata-se de uma das sessões de martírio que venho sofrendo aqui. Só me decidi a documentar depois de interagir com meus vizinhos, muitas vezes, sem resultado.
Ligou o aparelho. Primeiro escutei um pirralho gritando estridentemente, querendo um brinquedo que estaria guardado em um local inacessível para ele, enquanto outra pessoa, que supus ser sua mãe, fazia de conta que nem escutava, cantarolava uma música baiana. Sentindo-se contrariado, o guri mais alto gritava. O gravador, posto
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Antônio Saracura
sobre a mesa de centro da sala, trepidava nos agudos. O menino pediu
(lá na fita), implorou, gritou e, não conseguindo nada, passou a chorar,
inconsolável. Dona Mara apontava o apartamento vizinho, querendo
me dizer que os autores da gritaria moravam lá. Baixou então o volume
e falou que todo dia era assim.
Avançou a fita e, num local já marcado, deixou o som encher a
sala outra vez. Escutei o grunhido desesperado de um cachorro preso,
querendo comer, pedindo companhia, precisando escapar, arranhando
a porta. Era o cachorrinho de luxo da enfermeira de frente, dona Mara
indicou-me com um gesto. E sem abaixar o volume, disse-me que o
pobrezinho fica sozinho desde cedo, quando a dona sai para o hospital
onde trabalha. Até as oito ou nove da noite. E dona Mara avançou
o gravador um pouco mais. Latidos potentes, au-aus arrasadores. O
som vinha do outro apartamento, ao lado da enfermeira, dona Mara
informou-me com sinais. E complementou dizendo que o grande cão
ficava preso na área de serviço e, da janela aberta, acompanhava o
fluxo de pessoas circulando nos jardins embaixo. Latia para todos, só
parando quando tinha certeza de que o intruso se fora mesmo. Nessa
última parte da gravação, o pequeno cachorro da enfermeira entrou
também em cena, não grunhindo, mas latindo. Dona Mara falou-me
que se tratava de latido de solidariedade.
-Felizmente o menino descera para brincar, desfalcando a orquestra
macabra. – concluiu, desligando o gravador.
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23. VOTO DE CONFIANÇA
Em minha vida toda busquei parceiros confiantes. E os tive em cada lugar em que morei, apesar de ter andado muito e de não ter podido carregar comigo os parceiros conquistados de um lugar para outro.
Mas nunca os esqueci, especialmente aqueles que corresponderam à confiança recebida. Como o mecânico de São Paulo, que se chamava Miguel. Ele mandava buscar o meu carro onde estivesse enguiçado. Depois do conserto, ligava-me. Ao pegar meu carro de volta, sempre limpo e cheiroso, explicava-me o serviço feito, disponibilizando as notas de peças e mostrando-me, numa caixa, as peças que descartara. Como o homeopata de Brasília, que cuidou de mim e de meus filhos numa fase difícil. O clima seco folgava a pele e ressecava-nos por dentro. Longas consultas investigando cada detalhe. Saíamos de seu consultório com os globozinhos milagrosos. Ainda hoje, trinta anos depois, uso alguns de seus remédios. E também em Brasília, o taxista que me levava, que me pegava no aeroporto, em qualquer dia, estivesse eu onde estivesse. Ele dava um jeito. Na sua agenda constavam minhas viagens, minhas andanças pela cidade. Fiquei amigo de sua família lá em Taguatinga, onde o visitei várias vezes. E, nos domingos vazios, riscava no Lago Norte, dizendo que estava a serviço. Viera apenas para um dedo de prosa. E o pedreiro (na verdade um multiprofissional) aqui de Aracaju, onde moro hoje. Nem tenho serviço o tempo todo, mas invento, apenas para mantê-lo perto. Todos os meus projetos passam pelo seu crivo. Todos os detalhes, uma viga de sustentação, um produto especial a ser aplicado.
Quando tenho que viajar, Pelé (é assim que o chamo) assume o meu lugar com sobra de qualidade.
Aqui em Aracaju eu tenho também o meu médico de confiança. O dentista para o qual abro sem medo a minha boca. O serralheiro, o eletricista. Tenho o posto de combustível onde sempre abasteço meu carro.
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Antônio Saracura
Tenho a agência bancária, a igreja, o restaurante, a banca de
frutas.
Só não tenho mais o técnico de eletrônica. Depois de dez anos
comigo, descobri que me enganava, abusando da confiança que lhe
dedicava, abusando de minha boa fé. As centrais dos meus alarmes
nunca tiveram baterias, apesar de tê-las comprado. A minha televisão
sempre precisara de peças que nunca foram colocadas. Cansei de levar
computadores quebrados à sua loja, pagando peças novas e ele improvisava
by-passes de sua sucata. Mas a quebra da confiança aconteceu
há poucos dias, quando me vendeu um sistema eletrônico de portaria
por um preço duas vezes maior que o preço do mercado. Confiava
nele, como nos demais privilegiados que me conquistaram, e nem pedi
orçamento. Paguei-lhe como sempre fiz, sem nem pedir recibo. O meu
azar (afinal, perdi o parceiro) e o dele (que perdeu o cliente besta) foi
ter vendido um sistema semelhante em outra obra perto, pelo preço
de mercado. Eu e o outro comprador temos o mesmo médico e aguardávamos
sermos atendidos. Estávamos um ao lado do outro. Conversávamos.
Eu sabia de sua obra e ele sabia da minha. Nem sei como a
conversa descambou para o preço pago pela central de portaria.
Liguei para saber por que superfaturara. Alegou problemas em
casa, precisara de dinheiro para pagar a fatura do cartão da esposa.
Além do mais, essa era uma prática comum no mercado. Não entendia
por que eu estava tão chateado.
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24. CUIDADO COM PAULISTA
Comprei telefones em toda cidade em que morei durante muitos anos. Dessa forma, sem saber, acumulei uma grande quantidade de ações. E, por causa delas, tornei-me o alvo de insistentes telefonemas de corretores querendo comprá-las.
Mas, nunca gostei de vender nada, especialmente bens ambicionados por terceiros. Sempre pensei que, se alguém quer comprar algo meu, é porque esse algo lhe trará ganhos que poderiam ser meus.
-Não vendo e não me ligue mais! – desligava o telefone.
Passava uns tempos sem perturbarem, mas outro corretor (ou até o mesmo com a voz disfarçada) voltava a insistir, fazendo ofertas pelas minhas ações. De tanto me tentarem, despertou-me a curiosidade e fui um dia à companhia telefônica saber o tamanho de minha fortuna. Mas ela não tinha mais o controle, passara para um banco. Fiquei uma tarde inteira esperando minha vez de ser atendido no tal banco.
Um estagiário inseguro gaguejava à minha frente. Eu era o primeiro que lhe aparecia querendo saber sobre ações. Foi lá para dentro e, daí a meia-hora, voltou com um impresso de computador. Tudo que eu tinha não dava nem 20% do que me ofereciam. Um valor irrisório!
Esqueci o assunto até que, tempos depois, o corretor voltou à carga. Perguntei-lhe por que insistia tanto? Disse-me que trabalhava para um empresário que pretendia tomar o controle acionário de uma companhia. Era uma oportunidade de ouro que estava me oferecendo.
Os papéis não valiam nada para mim, nem para os milhões de acionistas anônimos espalhados no Brasil. Os bancos vinham recebendo os dividendos e, depois de certo tempo, se apossavam definitivamente dos papéis. E, por isso mesmo, escamoteavam as informações. Impediam que os proprietários soubessem de sua existência. A única alternativa para mim era vender enquanto era tempo. Aproveitasse!
Ele percebeu que eu me balançara e continuou. Que eram pa60
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péis perdidos que só eles poderiam localizar. Se eu concordasse em
negociar, pediria ao seu patrão para me ligar, explicar-me melhor.
Nem desligou direito o telefone e um paulista de voz melosa e
envolvente entrou na minha linha. Para fechar negócio logo, fez uma
oferta ainda melhor. Como estava de viagem marcada para Aracaju,
para assinar outras compras, precisava logo da minha resposta. Pedi
um tempo para pensar. Ele disse que, enquanto eu pensava, prepararia
os formulários, pois eram muitos. Quando chegasse a Aracaju, ligaria
para mim, para irmos a qualquer cartório de minha escolha.
Passei cinco dias mantendo contato com antigos colegas, tentando
esclarecer minhas dúvidas. Ninguém pôde me ajudar em nada.
Voltei ao banco e o mesmo estagiário olhou-me com estranheza. Mandou-
me para o gerente, que reclamou irritado. Eu o estava ocupando
com um serviço já prestado por seu funcionário. Em outros bancos a
que fui, pois soubera também guardar ações, os funcionários não encontraram
nada para mim.
Só quando assinei todos os papéis de transferência, em cartório,
é que soube onde estavam escondidas minhas ações, e também
como localizá-las. E, de posse de cópias dos documentos, corri aos
bancos. Estavam realmente lá. Haviam procurado em outra opção do
sistema. E as ações valiam dez vezes mais do que eu recebera.
Quem mandou quebrar a regra de nunca vender nada?
Quem mandou não tomar mais cuidado com paulista?
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25. ESGOTO NOS MANGUES
No meu bairro, ou melhor, nas quadras em torno de minha casa, não há esgotamento sanitário. Cada residência possui sua fossa e a esgota, quando cheia, através de empresas especializadas da cidade. Alguns moradores as destilam sutilmente, através de ladrões, na via pública mesmo.
Cerca de dez anos atrás, um governador mandou escavar as ruas. Lançaram tubos grossos, dizendo que estavam construindo a rede de esgotos. Aprontaram caixas de alvenaria nas calçadas. O prefeito, que na época pertencia a um partido da oposição, veio em seguida, com caçambas de cascalho, e pavimentou as ruas e as obras do governador. Eles brigaram na imprensa por uns tempos. Mas o certo mesmo é que ficamos sem a rede de esgoto, apenas com as caixas truncadas nas calçadas.
No entorno de minha casa existem dois condomínios de bloquinhos muito antigos, pioneiros da urbanização das marés daqui. Os seus esgotos sempre escorreram a céu aberto, para o lado de cá dos muros, encharcando os terrenos baldios e fluindo pela frente de nossas casas. Todas as denúncias que fizemos deram em nada.
Agora, este ano, os terrenos baldios foram terraplanados. Três grandes condomínios de prédios começaram a ser construídos. As ruas em volta foram asfaltadas. Grandes valetas foram cavadas na direção do mangue lá do rio Poxim e foram enterradas manilhas grossas de cimento. Daí a pouco, os esgotos dos velhos condomínios secaram. Mas ninguém mexeu na rede enterrada pelo tal prefeito do outro partido. A antiga central de tratamento, que fica na esquina do material de construção, da dinâmica Neide, continua abandonada onde pés de jurubebas jogam sementes por cima de muros embolorados.
Eu fui pessoalmente conversar com o engenheiro de uma das novas obras. Perguntei-lhe o que seria feito dos detritos sanitários ge62
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rados pelos novos moradores que dentro em breve viriam habitar os
novos apartamentos. Ele falou que a rede de esgotamento já estava
pronta, fora a primeira obra da construtora. E mostrou-me o trilho de
asfalto novo que corria no centro da pista em direção ao mangue, cobrindo
as manilhas que vira enterrando.
-Aproveitamos e resolvemos o problema dos condomínios vizinhos.
Jogamos direto no mague. De certa forma, resolvemos também
um problema dos moradores, que não terão mais um rio de esgoto
correndo pelas suas portas! – concluiu.
Muito mal para os caranguejos e os peixes, moradores das
águas e dos mangues da foz dos rios Poxim e Sergipe.
Suportarão com vida tanta sujeira?
Muito mal para toda a cidade. Para nós também.
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26. CARRINHOS DE GRAÇA
Estive em Madri e fui a um supermercado com a família amiga que me hospedava. Ao estacionarmos o automóvel, caminhamos até um setor de onde sacamos um carrinho de arame trançado, igual aos que usamos aqui em Aracaju. Mas para arrancá-lo do cordão de aço, tivemos que introduzir uma moeda em um pequeno cofre grudado em sua alça, ligado a uma engrenagem que mantivera o carrinho preso aos demais. Após as compras, quando guardamos os pacotes no nosso automóvel, dirigimo-nos outra vez ao cordão de carrinhos e engatamos o nosso que, com um estalido, liberou a moeda depositada antes.
Achei que fomos servidos satisfatoriamente e que prestamos, em paralelo, um serviço importante ao supermercado. Ficaria difícil para seus empregados recolherem todos os carrinhos largados no estacionamento, em qualquer lugar, a tempo de não entulhar o espaço. Por mais que corressem, sempre iria ter um na frente de qualquer automóvel, ou deslizando em sua direção, aproveitando a inclinação do terreno, mesmo que ninguém o tivesse empurrado. Poderia ter outro colado à porta do passageiro, numa zona invisível ao motorista que inconscientemente o dispararia contra outro carro. Como tem acontecido aqui em Aracaju.
Fui recentemente a um churrasco no sítio de um cidadão conhecido aqui em Aracaju e lá vi carrinhos de supermercado por todo canto. Em um, estavam cocos verdes já com o olho feito, prontos para os tomadores de uísques. Outro, mais adiante, acomodava sacos de carvão, ao alcance do churrasqueiro. O filho do caseiro empurrava outro pela grama, carregando a irmã pequena, fazendo a maior algazarra. Ainda havia outros, que me custa agora recordar a que estavam servindo. Sei que todos, pois prestei bem a atenção a esse detalhe, tinham identificações de lojas da cidade.
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Antônio Saracura
xxx
O vagabundo que chega a Aracaju vai logo a um supermercado
e furta um carrinho. Passa a ser seu companheiro nas andanças pelas
ruas, onde acomoda as esmolas que consegue obter de porta em porta
e os objetos que surrupia pelo caminho. Dentro dele também ficam
suas trouxas de roupa e, à noite, o carrinho serve-lhe de armação para
o plástico que o protege do frio e da chuva, como se fora sua casa.
Outro dia, passou um comboio inteiro de carrinhos pela minha
rua. Observei aturdido que no da frente, empurrado talvez pelo chefe
do bando, tremulava uma bandeira de um time argentino, sacudida
pelos solavancos provocados pelo calçamento irregular. Quase todos
os carrinhos estavam envolvidos por panos, cobrindo-lhe as partes
baixas, como se escondessem segredos ou vergonhas. Um povoado
inteiro deve ter migrado para Aracaju. Talvez de Corrientes ou de Misiones.
E os carrinhos seguiram rua acima, atraindo com o chacoalhar
de suas rodinhas outros moradores, que olhavam aturdidos e incrédulos.
Com o preço da reciclagem tendendo a aumentar com o fim da
crise, e o quilo de ferro beirando um real, vai valer a pena canibalizar
esses carrinhos tão à mão...
Já que os seus verdadeiros donos pouco caso estão fazendo
deles...
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Minha Querida Aracaju Aflita
27. OS INCHADINHOS DE MINHA RUA
Estão em todo lugar. Andam sempre em grupinhos, uma média de três componentes. Geralmente são homens, com idade por volta dos trinta anos. Aparentam morar na rua, pois todos os dias estão sentados no mesmo lugar à sombra de uma árvore ou de um muro. Trajam roupas sujas, indicando que suas famílias os descartaram ou então não lhes dão o apoio logístico necessário. Barbas por fazer, pois nem ligam mais para esses detalhes bestas. Passam o dia todo lorotando, contando vantagens, com a voz engrolada dos bêbados. Cada um se diz herói enquanto os demais nem ligam, esperando a vez de se gabar também.
Uma garrafa de pinga barata, sempre abaixo do meio, é a confidente paciente dos inchadinhos de minha rua. Sinto-me impelido a conversar com eles, saber seus nomes, onde moram, por que bebem tanto e por que bebem o tempo todo! Mas temo ser mal interpretado, e mesmo agredido. Como estão sempre bêbados, vá lá confiar! E contento-me a observá-los de longe.
Agora já são três da tarde. Um deles levanta-se cambaleante. Atravessa a rua e fuça o tambor de lixo da frutaria da esquina. Pega dois cocos verdes dos quais fora extraída apenas a água.
Retorna para junto dos companheiros e começa a batê-los no meio-fio, quebrando-os. Todos comem pedaços de carne de coco. Percebo que cada bocado mastigado é empurrado com um gole gargalaçado da cachaça, esgotando pouco a pouco o resto da garrafa. Daí a instantes, encerrado o lanche, outro parte cambaleando, em nova missão.
Não entra no bar vizinho à frutaria, apenas faz um sinal, da calçada. O proprietário traz uma nova garrafa de pinga. Igual à que jaz abandonada no meio fio, junto com outras. Houve pagamento? Se não houve, o inchadinho tem crédito, é conhecido.
Em toda cidade em que morei, vi inchadinhos morrerem um a um. Um médico me falou que nem duram dois anos na cachaça,
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Antônio Saracura
morrem antes. Eles não fazem mal a ninguém. Pelo menos eu nunca
soube que fizessem. Via-os pedindo moedas a passantes, especialmente
a motoristas que estacionam por perto, a fregueses do setor comercial
onde eles costumam aterrissar. E, intimamente, recriminava quem
dava moedas, certamente contribuindo para anteceder as suas mortes,
pois seriam usadas para comprar mais cachaça.
E agora pela manhã-é muito cedo e o sol ainda não nasceu - eu
saio de casa para a minha caminhada rotineira. Em vez de seguir direto
para a praia, inverto o trajeto e caminho para o setor comercial do
bairro. Quem já está lá debaixo da árvore? O grupo de inchadinhos.
Deve ter passado a noite na farra. Vejo mais um, que sai de
um terreno baldio, apertando o cinto, limpando as mãos nas pernas
das calças. Caminha para cá, juntando-se aos outros três. Estou bem
junto deles. Dou-lhes bom dia. Todos respondem ao mesmo tempo,
como se tivessem ensaiado. Pareceu-me uma resposta festiva. Um deles
levanta-se e me pede um Real. Eu bato a mão no bolso da bermuda
para dizer-lhe com segurança que não trago dinheiro. Mas toco, lá no
fundo, em uma moeda, com jeito de um Real. Olho para o pedinte e o
flagro olhando a minha mão, que agora arredonda a moeda por cima
do tecido da bermuda. Eu buscara um apoio para negar e, enfraquecido,
pesco a moeda que não deveria estar ali e a estendo para o inchadinho.
Ele pega numa borda, mas eu continuo segurando a outra,
prendendo-a no ar. Sinto-me na obrigação de dizer-lhe algo, e falo:
“Mas não a use para comprar cachaça, viu?”. O inchadinho beija a moeda
e, na maior sinceridade do mundo, responde-me: “Deus me livre,
doutor! Vou botar no cofrinho!”.
Vou saindo devagar. Percebo de soslaio que os outros três seguram
um riso de chacota a muito custo. Nem ando vinte passos, e
escuto o matraquear de sonoras gargalhadas.
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Minha Querida Aracaju Aflita
28. HOMENAGEM MÚTUA
Por que será que o livro ovacionado na resenha da revista foi escrito justamente por um colega do resenhista? Artigos tratam de obras que ainda nem saíram, mas que serão um sucesso, quando o cronista de todo domingo resolver publicá-las.
Uma radialista, ontem pela manhã, estava emocionada no seu programa. O colega que acabara de lançar um livro permitiu que ela lesse no ar todos os dias uma de suas crônicas. A moça não se continha!
Já ouviram atentamente os programas nas manhãs de todos os dias, que as rádios transmitem? Dez por cento de preparação e o resto de pura louvação. Autênticos palanques de bajuladoras. Perceberam a cara de pau do cidadão que sempre liga e fala bem do prefeito de sua cidade? Cheira-me a porta-voz autorizado – até remunerado.
Aquele diretor de colégio particular (onde meus filhos estudaram e meus netos estudam), um dos bastões da eduação em nossa terra, é homenageado na Assembleia Legislativa de Sergipe pelo conjunto de seu trabalho. Como se fosse um herói de uma guerra, retornando da campanha. Deixe o homem trabalhar, minha gente! Ganhar seu salário, educar nossos jovens, exercer a profissão que escolheu!
O presidente do Tribunal de Contas do Estado está em Belo Horizonte. Viajou para receber da Câmara dos Deputados de lá uma comenda qualquer. Com certeza, ao retornar, vai mexer os pauzinhos para retribuir, aprovar na Câmara daqui uma homenagem igual para o autor do projeto que o homenageou lá.
Existia um senador vitalício no Estado (Graças a Deus já se foi!) cujo trabalho na Câmara Federal era apenas pedir votos de louvor para todo sergipano que se destacava em alguma coisa. Depois que pegou mais prática nessa louvação, passou a pedir votos para aniversários, acidentes geográficos, festas e localidades.
A Associação dos Distribuidores e Atacadistas - ADAS etc, etc
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Antônio Saracura
entrega comenda a personalidades (Jornal da Cidade de 07/12/2009).
Dezenove pessoas de destaque são homenageadas no TRT,
com a medalha de mérito (Correio de Sergipe de 05/12/2009).
É uma prática comum entre pessoas ditas ilustres se homenagearem
mutuamente. Jogarem pétalas um no outro. Não lhes bastam
os gordos salários. Nem o imenso patrimônio. Nem as regalias. Precisam
de mais. Para elevar a auto-estima, inflar-lhe o ego. Precisam de
afagos. Cada vez mais. Como se fossem viciados, dependentes de uma
droga. E devido a essa carência é que frutifica a indústria da bajulação,
do puxa-saquismo – que sempre germina fácil.
Revistas publicam matérias pagas congratulando-se com pessoas
nomeadas para cargos importantes. Empresários compram espaços
nas colunas sociais. O esquecido aniversário do peão vira uma
grande festa quando ele é nomeado feitor da fazenda. A secretária elogia
o nó da gravata do chefe e sua áurea nessa linda manhã primaveril.
A artista bajula a colega artista, especialmente quando se encontram
socialmente. “Você esteve divina no capítulo de ontem!”. Basta uma
desviar a vista, para a outra torcer de leve o bico.
Por que será que ninguém elogia as crônicas que publico semanalmente
nesse jornal imaginário? Talvez nem desconfiem de quem
esteja escondido por trás de Zeca Olho Grande, ou que seja o seu irmão
e sósia, Zé Caolho.
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Minha Querida Aracaju Aflita
29. PRÉDIOS ABANDONADOS
Houve um tempo, e não faz muito, em que na orla da Atalaia existiam muitas imponentes construções abandonadas. Tinham sido restaurantes de luxo e bares da moda que não deram certo. Todas elas passaram a arranchar vagabundos, viciados em drogas e, com o tempo, exalavam terrível fedentina, indignando as pessoas que, inadvertidamente, passavam perto. Primeiro o Poder Público, para escondê-las de turistas, cercou-as com tapumes. Depois, com os tapumes apodrecidos, vieram as máquinas e as derrubaram. Não fiquei sabendo se a derrubada provocou algum problema para os seus ocupantes transitórios, e mesmo para os proprietários originários que as abandonaram.
Pode ser que sim!
O terminal de embarque “Jackson Figueiredo”, às margens do rio Sergipe, em frente ao prédio da Receita Federal, ficou abandonado depois que a ponte Aracaju-Barra dos Coqueiros foi inaugurada. As barcaças de passageiros perderam seus fregueses e o governo, como sempre faz, deixa o problema crescer para então cuidar dele. Parece que assim gera mais ibope! Daí a pouco, todos os seus equipamentos, inclusive as grandes letras de metal que o identificavam, foram levados pelos funcionários da reciclagem, pelos catadores de sucata. A imprensa caiu em cima e vieram os funcionários da Prefeitura (ou do Estado) e colocaram tapumes. Ainda hoje a grande construção portuária está sem serventia, contaminando os vizinhos.
Em frente ao dito terminal de embarque, o grande prédio onde funcionou a Receita Federal até outro dia jaz abandonado, com vidros quebrados, portas podres, à mercê da marginalidade.
Pela cidade inteira há outras construções, algumas do governo, mas muitas outras são particulares. Pessoas que morreram e cujos herdeiros estão brigando (como o patrimônio da antiga Telefônica de Sergipe, que o Governo tomou e depois vendeu, ficando com o dinheiro), ou mesmo pessoas vivas que não sabem o que fazer com o que têm.
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Antônio Saracura
Lá no meu bairro, provavelmente no seu também-se não na
mesma rua, em algum lugar-sempre há algum imóvel abandonado. É
neles que se arrancham vagabundos, desocupados. É neles que se escondem
os ladrões. Usam-nos como base para saírem à caça e, depois,
como depósito de suas colheitas ilícitas.
E eu, que tenho azar de agora estar morando ao lado de uma
dessas casas, vivo atribulado. O proprietário mudou-se da cidade e
deixou-a com uma imobiliária que não conseguiu fechar nenhum negócio.
A imobiliária não aparece mais aqui nem atende aos meus telefonemas.
Os ladrões mandaram-me calar quando subi ao muro e os
ameacei. A casa nem era minha, falaram. Que eu procurasse o que
fazer. Ou que esperasse a minha vez.
Agora mesmo estão quebrando algo, pancadas fortes assombram
meu sossego. Devem estar arrancando a pia de granito preto da
cozinha ou o vaso banhado a ouro do sanitário da suíte. Ou estão vasculhando
as paredes em busca de algum cofre inexistente.
Talvez estejam apenas me testando, considerando que me rechaçaram
com sucesso no primeiro ataque que lhes fiz.
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Minha Querida Aracaju Aflita
30. FÁBRICA DE FRATURAS
Tenho ido ultimamente ao Hospital João Alves – o portentoso e admirável centro médico de Aracaju-visitar um sobrinho que está internado. Quebrou a perna em um “pega” de motos. Seu companheiro de quarto é um rapaz de Fátima, cidade da Bahia, também vítima de um acidente de moto. Nos apartamentos vizinhos da ala D e também nas outras alas em volta-andei pesquisando por curiosidade-a maior parte dos internos foi vítima de acidentes com motocicletas. Há idosos, fortes rapazes e até crianças ainda. Gente com cara de índio, de africano e de europeu. Filhos de Sergipe, de Alagoas, da Bahia inteira, até de cidades depois de Salvador. As motos matam e aleijam, e não discriminam. O grande hospital acolhedor abre os braços mesmo sabendo que não suportará o peso e que pagará caro por tanta bondade. Alguns acabaram de chegar da cirurgia, outros se recuperam lentamente e impacientes. Todos reclamam do hospital, dos médicos, das enfermeiras, da comida, da solidão, da demora da cura, do governo de Sergipe, do presidente Lula. Este é sempre o maior culpado.
Querem cair das motos, quebrar membros constituídos ao longo de uma vida pela paciente e ardilosa natureza, e sarar com uma simples imposição de mãos!
O baiano, companheiro de quarto do meu sobrinho, está lanchando um enorme sanduíche de mortadela, cujo cheiro característico enche o ambiente. A namorada o trouxe escondido em um local inacessível aos olhos dos fiscais da portaria. Curioso, pergunto-lhe por que precisa daquele complemento alimentar. Diz-me que sente fome. A comida no hospital é pouca. E fala do cardápio do café daquela manhã: um pão com manteiga (ele, em casa, come dez), duas rodelas de inhame (não se farta com menos de seis), uma xícara de café com leite (costuma tomar um bule cheio), uma banana (só lhe basta uma dúzia). E agora há pouco, no lanche da tarde, trouxeram um copo de suco e uma maçã vermelha.
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Antônio Saracura
-Há quem aguente? Se, pelo menos, fosse uma tubaína e uma
jaca...
E conclui:
-Já estaria morto de fome se não fossem os marroques de Zefinha...
Mas, deixando o hospital de lado, que é complexo demais, vamos
às motos, que não lhes ficam atrás. Alguma coisa tem que ser
feita, em termos de segurança, sob pena de continuarmos aleijando os
nossos trabalhadores, tirando-os das obras, das oficinas, de suas variadas
ocupações.
E aqui tomo a liberdade de pensar, caminhando pelo reverso da
estrada...
Não seria implantando o sistema de moto-táxis pretendido por
uma facção de suicidas; nem liberando o uso de capacetes, o que já
se defende como uma maneira de evitar os assassinatos impunes que
vêm ocorrendo em Itabaiana (por exemplo). Muito menos relaxando a
exigência de equipamentos adequados aos motoqueiros, como botas,
blusões de couro, luvas, calças resistentes-ou construindo circuitos de
motocross, poluindo os espaços gostosos da orla da Atalaia, para satisfazer
meia dúzia de ricos influentes que, logo, logo, enjoariam do
hobby.
Quem vai impedir que atletas sem os equipamentos adequados
utilizem esses espaços? E, como saldo, restará mais um esqueleto sucateado
enfeando a beleza natural da orla, além de uma imensidão de
dinheiro queimado. Já não bastam a Pista de Aeromodelismo, o Complexo
de Skates, o Muro de Rapel, o caro Kartódromo “Airton Sena”,
que tapa a vista e a brisa em um longo trecho da nossa maravilhosa
orla? Quase todos estão lá, abertos, liberados para qualquer um usar e
fraturar o crânio ou um membro.
Temos que encontrar uma maneira de desativar essas fábricas
de fraturas.
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Minha Querida Aracaju Aflita
31. CALÇADAS DESNIVELADAS
As calçadas (ou passeios), faixas livres de terra que existem entre o leito das ruas e as casas das famílias, foram criadas para que tivéssemos um espaço por onde andar a pé. Ou não? Com os carros indo e vindo em alta velocidade, o corpo humano certamente teria muito pouca chance de suportar um choque. A calçada representa uma área neutra, um refúgio. Carros não devem subir em calçadas.
Mas aqui em Aracaju é diferente. As calçadas são usadas para estacionar motos e carros, reboques amarrados em correntes, etc. As calçadas servem para motocicletas fazerem ultrapassagem, quando o trânsito engarrafa.
Todos esforços e vigilância dos órgãos que cuidam do trânsito têm sido insuficientes. Em qualquer rua por onde se ande, algo truncará o leito da calçada, fazendo com que o transeunte tenha que descer se quiser prosseguir sua viagem. Além de automóveis, há entulhos, areia para construção, postes da empresa de eletricidade...
E há as calçadas acidentadas desde a sua origem, em ruas construídas sobre antigas dunas engolidas pela cidade voraz: são as calçadas históricas, os patrimônios da humanidade.
Tento sair um dia com o carrinho de bebê, carregando meu filho, por uma calçada de Aracaju. Lá vem pela frente uma rampa de acesso à garagem de uma residência, mais alta. E agora, depois de um trecho plano, uma casa antiga, feita num terreno elevado (morro do Bonfim) com a calçada lá em cima, rente ao meu pescoço. E o meu carrinho de bebê tem que descer para a pista de rolamento. Um carro passa buzinando, arrancando tinta e fazendo-o derrear-se para o lado contrário. Subo de volta à calçada, agora já mais baixa, sonhando com planícies amenas. Qual o quê? Dou de frente com um motociclista que freia buzinando. Pneus cantam. Ressuscito de novo! Nem ando vinte metros e o carrinho enguiça, as rodas dianteiras travam. O dono da casa aqui à frente resolveu botar um novo piso na calçada e não retirou
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Antônio Saracura
o antigo. Sobrepôs! Por acaso ele está à porta e responde cordial ao
meu bom dia. Comento sobre a calçada levantada. Ele ri e fala:
-Ainda bem que o senhor percebeu. Ontem, uma velhinha goguenta
que os filhos não deveriam deixar sair sozinha esborrachou-se
aqui na frente da minha casa, quebrando os dois braços, além de fazer
um galão enorme na testa! Eu prestei socorro, levei-a ao hospital, telefonei
aos filhos. E sabe como me agradeceram? Disseram que eu fui
o culpado por ter feito minha calçada acima do nível das outras. Que
cidade é essa onde o dono de uma casa não pode nem melhorar a sua
calçada?
Deixei-o falando sozinho e, mais uma vez, empurrei o carrinho
de bebê para o leito perigoso da pista de rolamento.
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Minha Querida Aracaju Aflita
32. OS CONES DE LIXO
Cones de cimento, também chamados manilhas ou bueiros. Mas cones grandes, um metro e meio de altura e três de diâmetro. Esses cones são bastante utilizados para canalizar esgotos, córregos ou pequenos riachos.
Aqui em Aracaju, e acredito que também por aí afora, as Prefeituras, através de Órgãos de trânsito e segurança, tem-nos utilizado para bloquear acessos a áreas restritas que, circunstancialmente, oferecem riscos à circulação de veículos. Alguns deles ficam lá por muito tempo, parecendo gigantes gordos acocorados, mesmo depois de as restrições caducarem.
Estes estão há muito tempo na praia da Atalaia, no trecho que antigamente era conhecido como Praia dos Artistas, sobre uma área pavimentada, chamada Praça de Eventos. Foram colocados, talvez, para impedir algo que já não impedem mais. Os carros descem para a areia, ali, sem qualquer dificuldade. Alguém conseguiu movê-los para o lado, alargando o caminho, deixando o acesso livre. Não servem mais para bloquear nada, mas servem para guardar lixo. Todos estão quase pelo meio: latas de cerveja, garrafas de vidro e de plástico, pratos descartáveis, gatos apodrecendo, tudo que uma cidade pode produzir de porcaria. Urubus aterrissam nas bordas dos cones e dão bicadas lá dentro, como tamanduás catando formigas. Ou descem a cratera do vulcão para melhor sugar as lavas (ou seriam larvas?)
Eu vejo os cones toda manhã. Estão no roteiro de minha caminhada, em busca da flexibilidade perdida nesses anos todos de relaxo. Fico pensando na dificuldade em se extrair o lixo acumulado, devido à exiguidade e à profundidade dos cones. Deve ser por isso que as equipes que penteiam a areia nem ligam para eles.
Hoje fui andar mais tarde. Um sono pegajoso não me largava de jeito nenhum. Quando rolei da cama, passava das oito da manhã. O sol já estava quente. Ao me aproximar dos meus cones, um
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Antônio Saracura
grande ônibus de turismo estava parado próximo. Calculei que chegava
à cidade e parara ali para atiçar ainda mais a vontade de gozar
Aracaju. Velhos japoneses caminhavam à minha frente com máquinas
apontando para cada detalhe, disparando. Um deles andou mais rápido
e, já junto aos cones, conclamava os demais a chegarem logo.
Daí a pouco, todos estavam circulando entre os cones de lixo. Vi bem
quando uma senhora curva olhou com algum esforço o interior cheio
de lixo, recuando como que chamuscada por um lança-chamas. E uma
menina, chorando, puxava a saia da mãe, mostrando-lhe o sapatinho
atolado. Pisara num monte de vidro ainda mole.
Peguei um atalho e corri para a praia, passando rente ao grupo
que continuava disparando suas máquinas, captando a alma dessa misteriosa
e instigante Aracaju.
(Os cones foram finalmente retirados em janeiro de 2010, por
ocasião de uma Feira dos Municípios. Mas podem retornar!).
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Minha Querida Aracaju Aflita
33. A TEIMOSA BANCA DE REVISTAS
Essa banca de revistas da minha esquina, (moro no prédio oeste-sul do condomínio colado à Rua Acrísio Cruz, com a Rua Euclides Paes Mendonça), está aqui desde que o condomínio foi entregue. Hoje vive praticamente fechada. A sua concorrente próxima, a menos de cem passos, na Praça da Imprensa, teve sempre-e tem ainda-mais poder de fogo, muito maior espaço, estoque de publicações e clientes. Mesmo assim, fechada, os donos conseguem mantê-la na calçada, tomando quase toda a área destinada aos pedestres e dificultando o tráfego de carrinhos de bebês numa região onde colocar o pé na pista de rolamento é um grande risco. Afinal, esta é uma área nova da cidade, projetada por construtoras (por omissão do Poder Público ou por conluio com o mesmo) e, por isso, com muito espaço para construir prédios e pouco para a sua população fluir. Todas as regiões novas de Aracaju são assim. Eis, como paradigma, o bairro Jardins, seu vizinho. Um jardim de concreto!
A banca de minha esquina continua lá, com toldo estraçalhado, hastes podres de ferrugem. Em certa época, abre às sete da manhã e fecha na hora seguinte, e vende apenas um braçado de jornais. Em outros momentos, enverga a faixa de “vende-se”, para, depois, a chuva e as outras intempéries da natureza a destruírem. Os moradores das redondezas já se acostumaram tanto com a sua presença que toleram calados.
Minha vizinha de apartamento, dona Marluce, precisou comprar um remédio. Desceu. Bateu um dedo de prosa com o porteiro, escaneou a Rua Euclides Paes Mendonça e avançou até a esquina em busca da farmácia homeopática da Praça da Imprensa. Eram quatro horas da tarde e estranhou haver poucas pessoas andando pelas calçadas. Precisava ultrapassar o caixote de lata, a tal banca de revista. Era importante avaliar o trecho da Rua Acrísio Cruz, antes de mergulhar em sua calçada. Marluce era uma moça prevenida. Não encetava empreitada se o caminho não se mostrasse amigo. Esticou o pescoço o quanto pode, tentando contornar a banca. Não pôde ver o quanto que78
Antônio Saracura
ria, mas a calçada à frente pareceu-lhe livre. Esgueirou-se pelo cantinho
da calçada que sobra ali e tentou chegar ao outro lado. Quando
achou que conseguira, sentiu-se arrancada do chão.
Homiziado detrás na banca de revista-como diabos abriu a portinhola
sempre fechada a cadeado? -estava um rapaz taludo que lhe
segurou o braço e a puxou para si. Espetou-lhe um estilete nas costelas
e tomou-lhe o dinheiro do remédio. Cinquenta reais, pois não encontrara
em casa nenhum trocado menor. Para retornar ao seu apartamento,
teve dar a volta no quarteirão, de bico calado, sob pena de sofrer
depois sérias consequências. O taludo esperto precisava de tempo para
depenar outra pacata senhora, com quem dona Marluce compartilhou,
por um momento, o apertado espaço atrás da banca. Ela ainda viu a
carteira da outra vítima na mão do ladrão. Tinha muito dinheiro.
Que serventia melhor poderia ter uma banca de revista abandonada
à ferrugem esse tempo todo nessa esquina de bairro rico?
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Minha Querida Aracaju Aflita
34. A ÚNICA PRAÇA DO SIQUEIRA
Praça Dom José Tomás. Emoldurada pela bela igreja matriz do bairro e por um colégio mantido por freiras. Outros colégios públicos e particulares espalham-se no entorno. Estudantes aos magotes deveriam circular por essa praça, conversar sobre seus sonhos, ensaiar as primeiras paqueras. Sorrir!
As famílias do populoso Siqueira Campos (o saudoso e eterno Aribé) perderam sua única grande praça. Sua única área de lazer. Nunca mais verão seus filhos passearem entre as flores dos canteiros, seus idosos jogarem gamão à sombra das árvores.
Um prefeito doido loteou os canteiros de flores, derrubou suas árvores frondosas, mandou construir fileiras de botecos padronizados e entregou-os a pequenos comerciantes. Hoje, nem os fiscais da vigilância sanitária passam mais pela praça. Para quê? A imundície é geral, não há conserto. Tudo é um nojo.
Minha filha adolescente chegou reclamando. Nunca mais viria do colégio atravessando a praça. Contou-me revoltada. Uns moleques, que tomavam cerveja em um dos botecos, tiraram saliências. Ela fez que não ouvira. Um deles, mais ousado, levantou-se e passou a mão ousada na sua cabeça. Ela deu-lhe um safanão, jogando a mão para longe. Mas o moleque, incentivado pelos colegas que assistiam à cena, apalpou-lhe os seios infantis. Minha filha saiu em disparada por entre cadeiras e mesas dos bares e, por sorte, conseguiu escapar do caçador que a perseguia.
Quando cheguei à praça, não pude distinguir os agressores de minha filha. Proprietários e clientes se fecharam numa cúmplice indiferença. Fui à Delegacia de Polícia e a muito custo trouxe um policial comigo. A praça regurgitava de bêbados e desocupados. O dono do boteco não quis descrever os moleques que agrediram a menina – não prestara a necessária atenção, “não iria correr o risco de apontar um inocente”.
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Antônio Saracura
Os jornais de hoje estão noticiando que ocorreu, na noite passada,
mais um assassinato lá na praça. Um homem de bicicleta chegou
junto a uma mesa e desferiu vários disparos contra um dos fregueses.
Depois, calmamente, pedalou para longe.
Um repórter está entrevistando um dos donos de bares. Ele fala
que o ambiente todo está eivado de marginais. Nota-se uma grande
mágoa em sua voz, cheirando a despeita ou arrependimento tardio.
Fala que alguns comerciantes agora não vendem mais os inocentes
lanches. E estão ficando ricos. Se conhecera a vítima? Todos sabiam
quem era: um dos principais traficantes do Santos Dumont.
Onde está o heroico povo do Aribé que tolera, intimidado e
omisso, tudo isso?
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Minha Querida Aracaju Aflita
35. ENTREVISTA COM O TAL EX-PREFEITO
-Se fui? O melhor de todos! Não teve, nem antes nem depois de mim, um prefeito que tenha feito mais do que eu.
-Sobre as praças da cidade? Eu tive a ideia e fiz os quiosques, dando-os aos meus amigos ou aos amigos deles para botar o que quisessem. Reconheço que alguns caíram até nas mãos de adversários políticos. Fugiu ao controle.
-Se foi um erro? Pelo contrário. Foi o grande tento de minha administração. As praças estavam subutilizadas. Especialmente à noite. O povo só quer ver novela. Pior nas madrugadas. Nesse horário, a ociosidade dos espaços públicos chegava a ser escandalosa. Com os meus quiosques funcionando, o povo passou a usar esses espaços. Muitas vezes, o marido discute com a esposa e, para esfriar a cabeça, caminha até a praça. Escuta uma musiquinha, toma umas cervejas, papeia... Pela manhã, totalmente relaxado, corre para o abraço. Nova lua-de-mel! Ou de puro mé!
-Se não resolveu o problema de desemprego, amenizou um pouco. Dei oportunidade de trabalho a muito pai de família. Muitos vieram de outros Estados, onde sofriam sem oportunidades. Se não dei a mais gente, foi por culpa da oposição, que caiu de pau em cima, dizendo que eu loteara as praças e as calçadas, restringindo a locomoção e o lazer das famílias. Meu plano era encher a cidade de quiosques, como fiz com a Praça do Siqueira. E para que serve calçada larga? Uma banca de revista é um foco de cultura. Uma barraca de tapioca, uma frigideira de acarajé, uma televisão de cachorro, uma grelha de churrasco... Espraiam bons cheiros pelo bairro todo. Hoje lamento muito não ter mandado dar uma surra no líder da oposição. Mas a vingança de Deus tarda, mas não falha. O diabo o levou logo para as profundas.
-O desvirtuamento dos quiosques? Aí não cabe a mim. Meus sucessores na prefeitura é que devem pagar por isso. Nunca poderia imaginar que os botecos se transformassem em pontos de venda de droga, “rendez-vous” de putas e veados, escritório de assaltantes. Foi
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Antônio Saracura
relaxamento deles. Comigo não!
-Sobre poluição sonora? É que tem velhos chatos demais. Implicam
com samba, com axé, com pagode, com música sertaneja. A
minha sugestão é que relaxem. Tenho certeza, findarão se acostumando
com os sons, especialmente, misturados como lhes chegam. Se não
morrerem antes!
-Quanto à higiene? Não me venham culpar pelas comidas contaminadas,
pela imundície das cozinhas, pelos sanitários esgotando-se
pela praça toda. Eu mandei treinar os donos e os funcionários com
noções básicas de higiene. Na inauguração, eu estava lá e lanchei com
minha equipe toda. Não senti nada, além de uma pequena infecção
intestinal.
-Quanto à minha consciência? Você quer saber se tenho remorsos,
é? Tenho é orgulho.
-Se lamento algo que tenha feito enquanto prefeito? Só lamento
não ter conseguido me reeleger. Meu dinheiro foi pouco. Gastei quase
tudo que consegui desviar. Reconheço que dei muito azar, pegando um
concorrente de família rica, que estocou fortuna desde a chegada de
dom João.
-Acabou? Veja lá o que vai escrever no jornal! Acho bom trazer-
me antes a matéria para a minha aprovação. Para sua boa saúde!
Fico muito irritado quando alguém trunca o que falei ou bota palavras
na minha boca, prejudicando minha imagem.
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Minha Querida Aracaju Aflita
36. UM PRÉDIO NO MEIO DA RUA
Um prédio chique no bairro “Treze de Julho” invadiu o último trecho da Rua Amintas de Azevedo, tomando-lhe todo o passeio público. E a porta de sua garagem está também nesse local, cortando a estreita calçada. E, para piorar, este é um trecho sempre entupido de carros estacionados. Talvez pertencentes aos moradores do próprio prédio, os carros que sobram das vagas disponíveis-se bem que o mais provável é que pertençam aos fregueses do restaurante que se instalou no outro lado da rua. É um restaurante muito concorrido e, como os demais funcionando na cidade, disponibilizam muitas mesas e nenhuma vaga de estacionamento para os seus assíduos e numerosos clientes ricos. E nem precisam mesmo, pois vagas (a custo zero) existem nas ruas vizinhas, sobre os passeios, em frente às residências, mesmo em cima dos pisos rebaixados, sob placas de aviso para ninguém estacionar ali.
Eu tenho que trafegar por este trecho da rua e nunca deixo de me indignar com o pouco zelo dos vários prefeitos que elegi (com o meu voto livre) para administrar minha cidade. Tanto o que permitiu que a obra do prédio fosse feita, como o que deu o alvará de funcionamento ao restaurante ou como os que fazem olhos de mercador para os automóveis estacionados, a atrapalhar o fluxo na cidade. Nem posso maldizer um passado relapso porque há eventos acontecendo no dia de hoje, como esses carros parados impunemente em locais, no mínimo, impróprios.
E fico aqui imaginando as manobras feitas pelo empreendedor para obter a aprovação de seu projeto. Uma obra tão grande e tão demorada não poderia ser tocada na clandestinidade. Deve ter havido reuniões secretas para amaciar os gestores mais intransigentes. Que no terreno original não cabia um prédio grande era sabido por todos. Mas o construtor insistia que teria que ser de luxo, com apartamentos tipo mansão. Mesmo que tivesse que comprar a rua do povo. E não seria a
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Antônio Saracura
primeira vez que uma construtora faria esse tipo de operação. A cidade
está cheia de condomínios bloqueando ruas, engolindo calçadas, truncando
o tráfego.
Este caso até que não é tão grave, toma apenas metade da via.
E então, minha indignação transforma-se em certo alívio. Dos males
o menor! Ainda sobrou uma faixa estreita para passarmos em busca da
boa caminhada no calçadão do Viana.
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Minha Querida Aracaju Aflita
37. O MEU HORTO DAS OLIVEIRAS
Mudei-me para o meu novo apartamento, no bairro Jardins. Assinei relutante o contrato de letras miúdas com o banco financiador. É um novo condomínio construído dentro das técnicas mais modernas de habitação: áreas de lazer, salas de reuniões, espaços agradáveis. Afinal, trata-se de um projeto moderno encaixado em uma área planejada da cidade. Um desenho urbanístico invejável, próximo do pulmão verde que é o Parque da Sementeira, ao lado do maior shopping da cidade, onde há tudo de que você precisa e muito mais.
Vinha dando sinal desde longe. Reduzi a velocidade para entrar na garagem do meu prédio, quando um buzinaço ensurdecedor estourou atrás de mim. Percebi que travara todo o tráfego do bairro. O acesso às garagens fica rente à rua, numa curva abrupta. Por pouco, não arrancaram pedaços de meu carro. Ainda ouvi, enquanto subia a rampa íngreme, pesados xingamentos à minha falecida mãe. Tão atribulado estava que nem percebi o caminho de colunas que leva à minha vaga, estreitando-se. Amassei a porta do passageiro. Ainda bem que o guarda do estacionamento estava almoçando longe e nem me intimou a pagar os azulejos marcados.
Depois do almoço precisei ir de carro para o meu trabalho. Cadê conseguir entrar na pista, sair do prédio? Depois de muitas arremetidas goradas, finalmente um velho fusca reduziu e sinalizou para eu passar. O buzinaço estourou atrás dele, mas eu já estava me distanciando rápido, escapando, graças a Deus, ileso. Quanto ao Fusca nada posso garantir.
Já estou pensando, assustado, sobre quando tiver que retornar, na hora de maior rush, um pouco depois das dezoito horas. Flagro-me rezando, pedindo que Deus me ilumine ou que, pelo menos, mande São Sebastião para me ajudar.
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Antônio Saracura
Vou jogar a culpa em minha esposa. Fazer o maior sermão. Afinal,
foi ela que insistiu na compra desse apartamento. Eu apresenteilhe
alternativas, nenhuma aceita. Eu insisti que o acesso à garagem do
prédio era um caso de polícia. Ela contra-argumentou, usando as palavras
do corretor: engenheiros de tráfego da Prefeitura tinham aprovado
a obra, após testes exaustivos. O acesso era normal. Eu é que estava
botando chifre em cabeça de peru. Teria que ser aquele. Junto ao seu
trabalho no Shopping.
Parece que vou ter que me acostumar, como me acostumei com
ela. Quem sabe até gostar também! Que ambos são perigosos, eu sei
que são!
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Minha Querida Aracaju Aflita
38. ACESSO LIVRE, MAS NEM TANTO
O trânsito hoje está pesado. Aracaju deve ser a cidade brasileira que tem, proporcionalmente, mais carros rodando. Estou suando nesta fila dupla da Anísio Azevedo, tendo à minha esquerda o canal Tramandaí exalando miasmas samarônicos e, à direita, casas decadentes. Ainda bem que a maré não está alta, ou eu estaria agora boiando na água salgada que sempre inunda esta região. Estou na pista da direita, em busca da Beira-Mar, que é o caminho da minha casa, no Mar Azul. O sinal da Acrísio Cruz (ou Cedro) amarelou e não dá mais para mim. Azar! Paro em cima da faixa de pedestres. Ainda bem que parei. Uma motocicleta cruzou raspando à minha frente. O motoqueiro maluco deve ter partido antes do verde, com certeza!
Relaxo um pouco...
Alguém buzina atrás. Deve ser amigo. Abro o vidro e tento identificá-lo, esticando o pescoço para fora. Não pode ser amigo, pois se mostra pouco amistoso, chamando-me de barbeiro-analfabeto, mandando-me sair da frente. Olho o sinal, ainda está vermelho, e bem. Volto-me para o motorista, que está cada vez mais irritado. Tento adivinhar o que fiz de errado, meu Deus? Finalmente, ouço-o melhor e a sua revolta reside no fato de eu estar bloqueando a direita, que deve ser o seu destino. Deduzo que eu não deveria estar ali... Mas não tenho como avançar um milímetro sequer, pois uma fila de carros que vai para a Rua Cedro raspa em mim, já que avancei demais antes. Sinalizo que tenha calma, pois logo seu problema será resolvido. Entretanto, o homem desce do carro e caminha para cá. Vejo-o crescendo no meu retrovisor. Atarracado, cabelo ripado, óculos de aro redondo. De relance, é escrito meu ex-genro mastigando a língua. Não consigo levantar o vidro, atrapalho-me na pressa. Ele desce sua mão enorme na porta aberta de meu carro, empurrando para dentro a nesga de vidro que ainda estava de fora. Olho-o assustado, envergando meu corpo para a direita, tentando escapar de um provável soco. Ele me abertura com vigor. Cobre-me de vitupérios.
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Antônio Saracura
Os demais motoristas gritam para o agressor voltar logo, pois
o sinal está abrindo. Dá-me um safanão de despedida, fazendo meus
óculos de grau se perderem no piso escuro.
Avanço finalmente, ouvindo-o buzinar e me chamar do que sei
que não sou, enquanto entra pela sua direita livre que, juro por Deus,
inconscientemente bloqueara.
Não me sinto em condições de guiar. Paro no primeiro espaço
e saio do carro. Alguma coisa mexeu comigo lá no fundo, pois sinto
náuseas. Vomito demoradamente com a mão direita apoiada no muro.
Caminho dois passos para longe do meu intestino expelido e sentome
no meio fio. Descanso um pouco e então percebo que estou ainda
muito próximo do cruzamento. Atravesso a pista e me coloco junto à
mureta do canal, buscando mais ar e olhando o vai-e-vem dos carros.
E começo a despertar. Flagro-me contando os carros após cada sinal
que se abre. São muitos. Em cada vez, cerca de sessenta vêm para o
lado da Beira-Mar e apenas três para o lado do Shopping, entrando
na Rua Acrísio Cruz (não deveria ser Cedro?). E as duas pistas (duas
apenas) são ocupadas, uniformemente, independentemente do destino
que cada carro seguirá. E não escuto ninguém buzinar, reclamando
que tenha sido prejudicado pela preferência roubada.
Só comigo é que acontecem essas coisas!
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Minha Querida Aracaju Aflita
39. POBRES CICLISTAS
Já li em jornais e vi na televisão que alguns países do mundo desenvolvido (Europa) têm na bicicleta um meio de transporte muito difundido e seguro. Aceito por pobres e ricos. Ciclovias cortam as cidades e o país, ao lado das pistas. Num dos vídeos a que assisti, executivos de terno pedalavam suas bikes indo para o serviço e, nem por isso, demonstravam constrangimento.
Há uma preocupação aqui em Aracaju, também, em se construírem ciclovias, tanto que o prefeito sempre está falando no assunto, alardeando que inaugurou tal trecho e que a meta é cobrir, até o fim de seu governo, todas as vias-chave de acesso aos bairros populosos da periferia.
Pelé, o pedreiro que trabalha para mim, comprou uma bicicleta. Ele mora no Augusto Franco e a minha obra está situada no Salgado Filho. Contou-me que sua decisão foi motivada pelo discurso do prefeito. E ele acompanhara as obras, ao longo de seu caminho casa-trabalho, de implantação da ciclovia.
Pedi-lhe que tomasse cuidado, “motorista não respeita ciclista”. Contei-lhe alguns casos de amigos que morreram arremessados por ônibus, imprensados por caminhões ou perseguidos por automóveis. Ele conhecia todos. Insisti para que ficasse atento.
Tem um mês que Pelé vem pela manhã e volta à tarde, de bicicleta. Seu trajeto é uma reta só: pega a Hermes Fontes, segue pela Adélia, continua na Heráclito Rolemberg e está em casa. Uma multidão de ciclistas faz o mesmo caminho, formando uma parede de amigos e desconhecidos.
Está satisfeito e me diz agora que o único local em seu trajeto que o atemoriza é sob a ponte do trevo da Adélia Fontes com a Avenida Tancredo Neves, junto ao teatro Tobias Barreto-uma obra recém-inaugurada pelo atual prefeito. Cantada em prosa e verso como o de mais moderno que Aracaju tem, com uma pista de ciclismo que a atravessa de fora a fora.
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Antônio Saracura
-Como assim? A pista foi bloqueada?
Pelé diz que não. Existe realmente uma ciclovia no sentido
leste-oeste. Mas não foi feito nada no sentido norte-sul, quando seria
até mais fácil fazê-lo, por baixo da estrutura de cimento. E este é o
caminho de Pelé.
Dele e de uma multidão de ciclistas.
Fecho os olhos e vejo os ciclistas parados junto ao viaduto,
apoiados nas suas bicicletas estáticas, olhando para o emaranhado de
pistas. Carros passando, voando, para todo lado. Alguns ciclistas coçam
a cabeça. Pensam em como atravessar o rio: onde haverá menos
corredeiras, onde é mais raso? Lá no outro lado está a continuação da
ciclovia aqui descontinuada, esperando-os acolhedora. Um mergulha
no redemoinho. Consegue romper as valas, driblar o cipoal de arame
enroscado, sair do outro lado, inteiro. Outros, um a um, vão mergulhando
no incerto. Precisam chegar a casa, precisam chegar ao trabalho.
E todos os dias a mesma guerra para atravessar apenas o viaduto
recém-inaugurado.
Se Pelé não me contasse eu não acreditaria.
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40. PELA CONTRAMÃO
Finalmente o órgão que cuida do trânsito, depois que esperamos dois anos inteiros, regularizou a situação da minha rua. Graças a Deus!
Agora as setas indicam (grandes, chegando a escandalosas) que os carros fluam apenas na direção do centro. Há marcações no chão, nos postes. Nunca mais devem acontecer os atropelamentos, ceifando a vida de crianças e velhos que sempre transitam pela minha rua. Eu mesmo já fui abalroado por um veículo. Pegou-me de raspão. Pulei antes.
Os agentes ficaram a semana inteira orientando os incautos, que nunca leem nada e seguem o costume arraigado. Mas já vão embora. Deixarão o trânsito por conta da consciência de cada um. O chefe fala-me que nem poderia ser diferente. Ficaria muito caro manter a equipe por mais tempo na rua, a cidade é grande. E é esse o procedimento no mundo todo. A população vai praticando a cidadania, alertando os infratores e, logo, logo, todos obedecerão.
Já faz um mês que os agentes se foram. Todos os dias eu trafego, pelo menos duas vezes, pela minha rua. Quase sempre cruzo com um carro andando na contramão. Dou sinal de luz, piscando insistentemente. Gesticulo, alertando-o sobre a direção errada que está seguindo.
Hoje, aproveitei que o infrator parara ao meu lado, eu indo e ele vindo. Um caminhão que me seguia o impediu de avançar. Aproveitei, e disse-lhe, com muito jeito, que estava na contramão, que “agora o tráfego flui apenas na direção contrária a que ele estava”. O rapaz olhou-me nos olhos com raiva. Senti que fora uma temeridade ter falado e, agora, seria mais prudente fugir. Mas tinha um carro fechando a minha frente. O infrator falou alto, bem perto de minha cara:
-Tem certeza que tô errado, coroa? Tô fazendo o que todo mundo faz. Por acaso, você é guarda de trânsito? Se for, pegue o talão e me
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Antônio Saracura
multe. Otário!.
As últimas palavras me alcançaram já mais à frente, pois a fila
andara e eu me apressei em seguir adiante. Graças a Deus! Ele ficou
falando alto, cada vez mais exaltado, talvez até encorajado pela minha
fuga e, também, indignado pelo caminhão que continuava travando o
seu caminho. Era como se eu tivesse ateado fogo a um barril de combustível.
Quando cheguei à minha porta, achei melhor seguir adiante.
Temi que fosse percebido e, mais tarde, sabendo que eu morava ali,
viesse cumprir as ameaças que ainda fazia, lá no trecho engarrafado.
Será que terei coragem de alertar o próximo infrator que cruzar
comigo?
É muito perigoso exercer a cidadania numa tribo dessas.
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Minha Querida Aracaju Aflita
41. A FAIXA DE PEDESTRES
Como faço todos os meses, por volta do dia cinco vou a pé com minha mãe à agência bancária da Avenida Simeão Sobral, para retirar a sua aposentadoria. Ela está beirando os noventa e, nessas oportunidades, dispensa a bengala inseparável para melhor se apoiar em mim. A distância é pequena, dois quarteirões apenas.
Já estávamos retornando, parando aqui e acolá para cumprimentar algum idoso conhecido que também cumpria o mesmo cerimonial de todo mês. Subíamos a Simeão em busca da Rosário, onde fica a casa de minha mãe. A avenida tem um trânsito intenso em algumas horas, requerendo cuidado para cruzá-la. Dessa forma, olhando nas duas direções, achamos o espaço suficiente e atravessamos a pista da direita até o canteiro central, por onde continuamos a nossa caminhada. Como já estávamos junto à faixa de pedestres, situada em frente a uma grande loja de motos, paramos e ficamos observando o tráfego, em busca de uma nova oportunidade para atravessarmos a outra pista e alcançarmos a calçada que nos levaria para casa.
Muitos carros estavam estacionados junto ao meio fio em frente à loja, deixando livre apenas o espaço da faixa de pedestre. Um táxi vinha bem devagar. Não representava perigo. Descemos do canteiro para a pista e paramos um pouco, esperando que passasse. Mas ele parou exatamente sobre a faixa bem à nossa frente, fazendo fila dupla com o espaço vazio, fechando a única passagem à calçada. Lá bem longe, na altura da Japaratuba, um ônibus despontou, sinalizando perigo distante, mas que não podíamos ignorar. O motorista do táxi olhava-nos indiferente. O ônibus avançava em nossa direção. Estávamos a dois passos do táxi, bem no meio da pista. Não existia outro espaço aberto para alcançarmos a calçada, todos ocupados por carros estacionados, muito juntos. Minha mãe entrou em pânico e me puxou (nem sei onde achou tanta força) de volta ao canteiro central. Foi o tempo de o ônibus passar trincando no que lhe sobrou da pista, raspando no
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Antônio Saracura
meio-fio onde nos refugiáramos. Outros carros vinham atrás, uma fila
grande. Tínhamos que esperar uma nova oportunidade para atravessarmos
o resto da avenida. Finalmente, todos os carros passaram. Mas
o táxi continuava bloqueando o acesso à calçada, aguardando (ao que
parecia) um passageiro, que teimava em não aparecer. Eu achei que
deveria alertar o profissional do volante, um senhor de cerca de 60
anos, de rosto pacífico, sobre o fato de estar parado em um local proibido.
Ele olhou-me de um modo estranho e mandou um sonoro “vá se
arrombar”, procurasse outro caminho, se quisesse passar. E continuou
rascando enquanto o passageiro esperado, finalmente, embarcava. E o
motorista foi embora desfiando um rosário inteiro de ofensas chulas,
até dobrar a João Ribeiro, lá na frente.
Então pudemos ir para casa. Eu indignado, a ponto de me esquecer
de anotar a placa do táxi. Mamãe fazendo-me recomendações,
como se eu fosse ainda uma criança.
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Minha Querida Aracaju Aflita
42. O ROSTO CORTADO
Teve uma época em que, nos cruzamentos de Brasília, que, a rigor, nem deveriam existir, quando os sinais fechavam, o motorista podia ficar com os vidros do carro abertos. Não corria risco. Nenhum pedinte, vendedor ambulante ou ladrão de bolsa estava por perto. Foi um tempo bom!
Um político, desses que fazem qualquer besteira para atingir seu objetivo (ser eleito), até vender a alma ao diabo, promoveu as primeiras invasões das esquinas. Trouxe de uma periferia que pretendia encabrestar um monte de desocupados e espalhou-os nos principais semáforos da bela capital. Daí a pouco, notando que agora passara a ser permitido, muitos outros oportunistas acorreram às esquinas. E aí acabou o sossego. Brasília ficou igual a Aracaju.
Bolsas em bancos ao alcance da mão eram furtadas ou tomadas na marra. E ninguém podia pegar o moleque veloz, a correr contra o movimento do tráfego, ziguezagueando entre os carros, sumindo nas praças arborizadas ou nos hortos, mais à frente. Moedas à vista, bonés em uso, óculos escuros... E todos começaram a fechar os vidros dos carros, mesmo os sem refrigeração, até nos dias de canícula.
A mãe trazia seus filhos da escola, como sempre fazia ao meio-dia. O calor estava insuportável. O ar do carro pifara e ainda não tivera tempo de levá-lo para o conserto. Abriu mais um pouco o vidro da sua porta para respirar. O cruzamento estava apinhado. Moleques, homens velhos, mulheres maltrapilhas ou bem-vestidas circulavam entre os carros. Vendiam frutas e bugigangas, distribuíam panfletos. De flanela e garrafas-pet com água, lavavam, à revelia, os vidros limpos dos carros parados, aguardando o sinal abrir. Todos os desempregados do mundo combinaram esse cruzamento para circularem em passeata naquele meio-dia insuportável.
Ela não queria comprar nada e levantou a mão, pedindo que o lavador não jogasse água. Os vidros estavam limpos, o carro saíra a pouco do posto. Mas não teve como impedir. O jato já tinha partido,
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Antônio Saracura
lambuzando o vidro da frente e borrifando os filhos que cochilavam no
banco de trás.
Uma mão postada sobre a porta aberta, pressionando o vidro
com a pet chorosa, e a outra quase junto ao seu rosto, exigindo o pagamento.
O que tinha era uma ínfima moeda. O lavador olhou-a com
desprezo e, num gesto rápido, passou a mão (que já estava muito perto)
no rosto assustado, num ríspido carinho. E afastou-se ligeiro, quase
correndo. O sinal abrira, finalmente. Os carros avançaram pela larga
avenida.
Bem mais à frente, já à porta da sua casa, ela sentiu um frio na
face acariciada pelo lavador. Levou a mão ao rosto, calcando-o. Ao
retirá-la, estava grudando. Encostou o carro à frente de sua garagem e
olhou-se no espelho. Um comprido cordão vermelho atravessava toda
a maçã esquerda, de cima a baixo.
Eu estava saindo de casa e corri para socorrer minha vizinha
que com a mão cobrindo a face ferida, gritava aflita pelo esposo, que
já havia saído para o trabalho.
O médico do Pronto-Socorro falou-nos que, só naquela semana,
já era o quinto caso de rosto cortado por lâmina afiada nos semáforos.
Deus me livre de ver minha querida Aracaju aflita!
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43. GUARDADORES DE CARROS
Quando eu morei na Praça Camerino, já faz quinze anos, havia dois meninos (com idade entre sete e oito anos) que diziam olhar os carros que estacionavam ali. Ganhavam algum dinheiro que me parecia uma boa quantidade (quase todos os motoristas davam moedas). Eles orientavam as manobras e, juntamente com a mãe, que os acompanhava, lavavam por fora um ou outro carro, ganhando um pouco mais.
Hoje eles são homens feitos, e ainda continuam na Praça Camerino. Mas não tomam mais conta do trecho todo. Outros conseguiram entrar e lotearam a praça. Os meus dois conhecidos cuidam apenas do trecho que vai da Pacatuba até a Vila Cristina (ou Leonardo Leite), e que chamam Martinho Prado. Mesmo assim, trabalham com eles mais dois outros rapazes. Um deles cheio de tatuagem e piercings, e outro, baixinho, com corpo de halterofilista. São agora quatro vivendo do que rende aquele trecho da Praça.
Minha casa ficou alugada um longo tempo e o inquilino deixou-a muito estragada. Resolvi fazer uma manutenção. Numa manhã bem cedinho, parei a camionete com pedreiros e ferramentas e comecei o serviço. Não achei que, para parar o meu carro na minha vaga, a que fica em frente à minha casa, teria que negociar com os guardadores de carro da rua (ou, como se autodenominam, os “tomadores de conta”). Quando eles chegaram, um pouco depois, percebi o clima pesado. Olhavam-me demais. E, num momento em que tive que sair para comprar cimento, mesmo deixando três latas vazias demarcando o espaço de que precisava para estacionar depois, eles mandaram ocupá-lo. Quando retornei para descarregar o cimento, tive que parar em fila dupla, atrapalhando o trânsito, sob o apito ameaçador do agente de trânsito.
Agora estou negociando com um dos dois meninos que vi crescer. É um homem forte. Estou tentando convencê-lo de que vou parar o meu carro por mais de um mês ali. Virão caminhões e carroças com material de construção. Vão descarregar madeiras, telhas, areias.
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Digo-lhe que a vaga é minha por direito, já que sou o dono da
casa e que pago os impostos. Estou falando e aproxima-se um rapaz
bonito, engravatado, com cara de advogado. Ele é o dono da minha
vaga. Paga um aluguel mensal aos tomadores de conta. E já pagou este
mês adiantado. E é mesmo advogado. E diz-me que não é bem como
eu penso. O meu direito consiste apenas no acesso à minha garagem,
uma faixa estreita de dois metros de largura. Mesmo assim, é um direito
frágil demais, que qualquer juiz, bem confundido, pode cancelar.
Estabelece-se um bate boca e eu saio irritado da reunião, ameaçando
furar os pneus do carro que parar em frente à minha casa. Vou fazer
valer o direito que acho que tenho. Oriento aos meus pedreiros que
vigiem quando eu sair. Não deixem ninguém ocupar o espaço que demarquei.
Quanto aos pneus, quando eu chegar, avaliarei melhor: furo
os quatro, furo apenas um ou aguardo reincidência. Deixo latas cheias
de pedras demarcando meu território.
Volto carregado de telhas. Um carro está estacionado na minha
vaga. As latas foram jogadas sobre a calçada. Tenho que estacionar
longe (vários quarteirões) e venho a pé para a minha obra. Reclamo
aos pedreiros. Eles me dizem que não vão entrar nessa. Alguém ameaçou
furá-los. Não os pneus, as barrigas. Eles me pedem calma...
-Tenha cuidado com o baixinho forte. Dizem que é um matador
de Alagoas foragido aqui.
Eu olho para a praça. Os quatro guardadores estão sob o grande
oitizeiro, bem em frente à minha casa, do outro lado da rua. Estão
calados, de vista baixa. Tão pacíficos!
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44. ESTACIONAMENTO PÚBLICO E GRATUITO
Por que será que o Poder Público permite que se instalem empresas sem que possuam estacionamento para os carros dos funcionários e dos clientes?
Moro na Rua Edson Ribeiro, no bairro Salgado Filho, em Aracaju. Na verdade, moro na cidade toda. O acesso à minha casa está muito complicado.
Quando entro na rua, pelo lado da Francisco Porto, ainda bem longe de minha casa, que fica junto à Anísio Azevedo, vejo o mar de carros estacionados dos dois lados. Não vislumbro nenhum espaço vazio, nem diante das calçadas rebaixadas que dão acesso às garagens dos moradores da rua. Pelo leito estreito disponível só passa um carro por vez. Dois carros, mais à frente, travam o tráfego, um em frente ao outro, cara a cara, nenhum querendo dar marcha ré. Buzinas, sinal de luz, xingamentos! Tenho que parar o meu carro ali mesmo, a alguns quarteirões da minha casa, ocupando um lugar que deveria pertencer aos moradores dali.
Mas, por quê?
É que na minha rua funcionam duas empresas que atendem a grande público. Uma clínica de exames, pertencente à maior cooperativa médica da cidade, no primeiro trecho junto ao canal da Anísio Azevedo. E mais para cá, antes da Euclides Paes Mendonça, outra clínica, especializada em fisioterapia, pertencente a algum barão assinalado, e tendo como clientela todos os idosos ricos da nação.
No primeiro caso (a clínica de exames) chegam lotações do interior, trazendo grupos de pacientes, além de outros da cidade inteira. Muitos vêm de carro e precisam deixá-lo estacionado o mais próximo possível, até que concluam o exame. No segundo caso (fisioterapia) os clientes, na sua maioria, nem conseguem andar e, por isso mesmo, precisam da clínica. Os seus carrões precisam descarregá-los na porta e pegá-los depois no mesmo lugar. E têm, assim, que ficar o mais perto possivel, pois precisam chegar rapidamente, quando chamados pelos seus donos.
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A Clínica de Exames possui um grande terreno baldio cercado
de muros, a alguns metros da atual sede, o qual poderia ser transformado
em estacionamento ou, mesmo, em clínica com estacionamento,
substituindo-se a atual.
A Clínica de Fisioterapia dispõe, à sua frente, de um terreno
baldio, onde um lava-carros teima em se manter funcionando. E, ao
seu lado, outro terreno baldio, cujo dono tentou alugar, em vão, para a
clínica usar como estacionamento.
Tanto uma como a outra preferiram continuar entulhando a rua
como se lhes pertencesse, sem pagar nada a mais por esse serviço que
subtrai dos moradores e da cidade.
Mas por que iriam esquentar a cabeça?
Por mais que eu reclame, não passo de um chato, na visão dos
empresários e dos gestores da minha querida cidade aflita.
(No início de 2011 a Rua Edson Ribeiro foi transformada em
mão única. Graças a Deus! Depois de uma era de transtornos!)
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45. SINAL FECHADO
A fila de carros andava muito devagar. O trânsito estava pesado. E eu com uma pressa danada. O sinal fechou outra vez. À minha frente, formara-se agora uma pequena fila com cinco carros.
O sinal agora abriu. Mas nenhum carro se moveu à minha frente. Ou melhor, o primeiro carro, que estava bem embaixo do sinal, permaneceu estático. O segundo carro e todos nós, inclusive a grande fila que se formara atrás, disparamos as buzinas. E lentamente, quase querendo parar, o primeiro carro deslizou, finalmente. Quando pude avançar, o sinal já amarelava. E fechou. Com muita sorte, consegui ficar em segundo. À minha frente, o primeiro da fila era um carro de luxo em que um jovem casal aproveitava a fuga para trocar carícias, percebidas vagamente através dos vidros escurecidos.
Mais uma espera enorme!
E o sinal abriu outra vez. O carro da minha frente não se mexeu. Buzinas estouraram! O motorista soltou-se da namorada e acelerou. Mas já perdêramos um tempão. Graças a Deus, consegui ultrapassar o cruzamento e pegar a autovia, ir embora, ver se chegava ainda a tempo de pegar o filme no começo. Mas precisava de sorte, pois, na minha conta, havia ainda dois sinais pela frente.
Eu dirigia e pensava: por que-já havia observado em outras vezes-o carro que é o primeiro da fila nunca sai de imediato? E, por isso, provoca um retardo, que vai se propagando, travando o trânsito. Talvez porque a sua passagem esteja garantida. Por mais que se desligue, que fique fazendo poesia, quando o sinal abrir dá tempo para ele passar. E, se por acaso não perceber o sinal abrindo, os carros de trás avisarão, com suas buzinas nervosas. Então, ele relaxa. Não precisa gastar-se com mais essa preocupação. Deve ser por isso!
Graças a Deus, o primeiro sinal está verde e passo veloz, pois o próximo (vejo daqui) também está verde agora. Preciso ultrapassá-lo antes que feche. É pena que o carro da minha frente ande muito devagar, o seu motorista a mostrar o letreiro de uma loja aos demais ocupantes. A pista é estreita, impossível ultrapassá-lo. E o sinal vai es102
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gotando suas linhas verdes, uma a uma. Pronto, não deu mais tempo.
O carro da frente correu riscos, avançado no vermelho nascendo.
Estou agora parado, como o primeiro da fila. Certamente passarei
quando o sinal abrir. Outros carros vão chegando, enfileirando-se
atrás de mim. O sinal continua vermelho. Estou ansioso! Visualizo minha
namorada com os dois ingressos na mão, olhando impaciente para
o grande átrio agora vazio do cinema, torcendo para que eu apareça
logo. É um filme muito bem falado. Os amigos me recomendaram que
o assistisse do início, pois é quando acontecem as cenas que balizam a
trama.
Levo o maior susto! Buzinas estridentes, xingamentos! Vêm
dos carros parados atrás de mim. Volto-me indignado. Feixes de luz
atravessam meu rosto, encandeando-me. Do carro que está imediatamente
atrás, um rosto desponta gritando:
-O sinal está aberto! Passe ou saia da frente, seu retardado!
Na agonia, atrapalho-me com os pedais. O motor morre!
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46. NÃO REAJA!
Moro na Coroa do Meio, numa rua com poucas casas e onde garotos vagabundos circulam a pé ou de bicicleta, roubando os moradores e, algumas vezes, uns aos outros. Polícia por aqui quase não aparece. Muito raramente passa um carro da rota, em disparada, como se estivesse indo atender algum chamado longe ou levar funcionários atrasados para algum plantão imaginário.
Minha filha Candire chega sempre depois das sete da noite.Vem de ônibus, vem do trabalho. O ponto fica a três quarteirões. Muitas vezes, pessoas descem também e caminham com ela até a nossa casa. Outras vezes, quando percebe qualquer movimento estranho, ela nos telefona para irmos ao seu encontro. Busca proteção, mas nos leva também para a mesma zona de risco. E hoje ela vinha tão absorta em seus problemas e dilemas, que nem percebeu que descera sozinha. Nem se tocou em nos chamar. Caminhou resoluta pela rua deserta, abraçada à sua bolsa. Ruminando suas caraminholas, nem percebeu dois ciclistas que passaram por ela. E nem viu que, mais à frente, deram meia-volta e pedalaram em sua direção. Eles chegaram solertes. Finalmente, a abordagem. Um deles parou à sua frente, travando-lhe o caminho, enquanto o outro lhe puxava a bolsa presa sob o braço, e rosnava:
-Estou armado! Solte logo a bolsa!
Tudo que ela possuía estava ali: documentos, vales-transporte, o dinheiro do almoço do resto da semana, seus perfumes, suas maquiagens. Eram coisas importantes, até imprescindíveis para ela. Pelo menos foi o que achou na hora. E os dois vagabundos? Enquanto ela vinha do trabalho duro, ganhando pouco, eles apenas roubavam pessoas simples pelo bairro.
Gritou-lhes que não daria nem a bolsa nem nada. Que eles saíssem logo do seu caminho para não se arrependerem depois. Disse-lhes (mentindo) que era filha de um policial e que não teriam chance nenhuma depois do roubo. E empurrou um, jogando-o ao chão. Arrebatou a bolsa que o segundo ainda tentava tirar-lhe. Correu à casa em
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Antônio Saracura
frente e socou o portão de alumínio, fazendo grande barulho, enquanto
continuava ameaçando, aos gritos, os dois assustados gatunos. Um deles
estava agora com um revólver na mão, mas sem saber o que fazer
com ele, como se tivesse sido pego de surpresa. As luzes externas de
algumas casas se acenderam, devido à algazarra. A porta da casa onde
minha filha batia abriu-se e ela mergulhou para dentro. Nem conhecia
a vizinha, pois acabara de se mudar.
Corri para a rua, atendendo à voz aflita de minha filha ao telefone.
Os dois ciclistas pedalavam calmamente, já sumindo na esquina.
Nem se voltaram para os gritos de pega-ladrão, que agora a rua toda
berrava.
Chamamos a polícia. Depois de muito insistirmos, apareceu
uma patrulha-uma hora depois. O comandante ouviu a história com
cara de incomodado e, por fim, disse que sabia quem eram os dois
tipos:
-Infelizmente são menores. Nada podemos fazer! – e, voltando-
se para minha filha – A senhora, de uma próxima vez, não reaja! E
nunca se declare parente da polícia. É muito arriscado!
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47. VIGIA NOTURNO
Quando morei em Brasília, um vigia noturno trabalhava em minha rua, uma QL do Lago Norte, na época ainda pouco habitada. Circulava com seu apito estridente todas as noites, especialmente quando se aproximava a data do pagamento da propina. No começo, quando me mudei pra lá, não aceitei os serviços e neguei-me a fazer o pagamento. Diante das insistências e até das veladas ameaças, procurei informações com os vizinhos.
O meu vizinho do lado aconselhou-me a contribuir. Era uma quantia tão pequena, e o vigia já prestara bons serviços esses anos todos, além de ter uma família carente que vivia dessa renda... E eu vi que não poderia mesmo escapar dessa obrigação a mais, pois, nas noites seguintes, até dar-lhe o “ok”, o vigia não me deixou dormir direito. Postava-se em frente à minha casa na hora em que eu estava no sono reparador, tocando seu apito, que simulava um telefone chamando. Acordava-me e corria à sala com o fim de atendê-lo para, lá chegando, descobrir tardiamente o equívoco. Um ano depois, de repente, o apito parou de tocar nas madrugadas. Perguntei ao meu vizinho se sabia de algo. Mas ele também não atinava para o motivo. O vigia sumira de vez.
Chegou o fim do mês, época do pagamento, e o vigia não apareceu com seu talão de recibos, recolhendo nossas contribuições. As noites estavam mais silenciosas. Dormíamos sossegados. Num mesmo dia, fomos notificados por um oficial de justiça. Estávamos sendo processados pela família do vigia na Vara do Trabalho. Tivemos que constituir um advogado. A família queria receber os salários atrasados. Queria também salários futuros, até que os filhos do vigia pudessem trabalhar, depois de formados. Foi quando soubemos o que ocorrera.
O vigia voltava de uma noite apitando nas ruas do Largo Norte para o Varjão, onde tinha o seu barraco. Pedalava sua velha bicicleta, cambalenado de sono. Desviando de um buraco na pista, jogou-se em
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um automóvel que passava veloz. O motorista nem prestou socorro.
Encontraram o vigia agonizando, já perto do meio dia, escoriado,
costelas quebradas, órgãos perfurados, à morte. Levaram-no para
o Pronto-Socorro, salvando-lhe a vida, mas ficara inutilizado para o
trabalho, definitivamente. Um líder comunitário do Varjão, e também
assessor de um político da moda, convenceu a família a processar os
patrões, que até então nem sabiam do acontecido. O advogado trabalhista,
munido do talonário de recibos com nossos nomes, muito bem
escritos, e mais testemunhas de outros vigias que atuavam em áreas
contíguas, moveu o processo. Um juiz sonolento bateu o martelo.
Já tem vinte e cinco anos que saí de Brasília. Ainda não tive
notícias sobre os filhos do vigia, se já estão formados e empregados.
Deveriam! Mas, todos os meses, uma pequena quantia é descontada
de meu contracheque, a título de indenização trabalhista.
Nem adiantou vir me esconder em Aracaju.
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48. AS MILÍCIAS DE MINHA RUA
Roubaram a loja de minha irmã, localizada numa esquina no melhor local do Bairro Santo Antonio. Estouraram a porta rolante de ferro, como tem acontecido o tempo todo neste bairro sem polícia. A loja fica no meio de muitas casas residenciais, assim como todas as outras roubadas antes. Os moradores não escutaram nada também dessa vez. Só pela manhã é que ligaram para minha irmã, fazendo o maior escarcéu.
E o vigia noturno que minha irmã paga religiosamente e recomenda que dedique atenção especial à sua loja? Por que não viu nada?
Ele explica à polícia que estivera adoentado, pegara uma virose, impedindo-o de sair de casa para a ronda naquela noite. Ficara repousando! A esposa e uma vizinha confirmaram tudo, deixando-o livre de qualquer suspeita. Tinha um álibi.
E minha irmã, diante da inutilidade, resolveu cortar os serviços do vigia. Não pagaria mais um tostão sequer! Se ele não podia evitar os assaltos, para que gastar dinheiro à toa? E nas conversas que manteve sobre o assunto com outros assaltados do bairro, todos disseram que os roubos às suas lojas aconteceram quando o vigia faltara ao serviço. Será que ele não se afastava da área exatamente na noite em que o assaltante programara o assalto?
No fim do mês, o vigia apareceu para receber sua propina costumeira. E não gostou nada do que ouviu. Falou que não iria ficar assim. Saiu ameaçando...
O resultado é que minha irmã teve que fechar a loja pouco tempo depois. Além dos arrombamentos pela noite, começaram a acontecer assaltos pelo dia. Um motociclista descia da moto, entrava com o
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revólver em punho, roubava o que queria, partindo em disparada. Dois
dias depois, a cena se repetia. A polícia não conseguia chegar a tempo
e, quando ficava por perto, o ladrão não aparecia.
E o vigia continuou apitando todas as noites rua acima, rua
abaixo. Sempre reservava as apitadas mais estridentes para a frente
da casa de minha irmã, que ficava alguns quarteirões afastada da loja
e nem era a zona dele. Mais uma vez, a polícia não podia fazer nada.
Não iria proibir um pai de família de ganhar o seu pão.
Minha irmã teve que se mudar para outro bairro, pedindo aos
vizinhos e amigos que guardassem segredo sobre o seu novo endereço.
E lá onde passou a morar, quando escuta um apito na rua, apavora-
se, achando que é o vigia de novo.
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49. O DIREITO DE MANTER MINHA ARMA
Acho que sou um cidadão antenado. Escuto noticiários de rádio e televisão, leio jornais. Só não escuto mais rádio, porque as FMs (que pegam bem no meu carro) não transmitem noticiosos pelo dia, apenas músicas-quase sempre ruins-, sermões intermináveis me ameaçando com o fogo eterno, além de programas que mais parecem palanques para exibição de egos.
E fiquei muito surpreso agora no final de novembro (2009), quando o pedreiro lá de casa me disse que escutara no rádio que qualquer pessoa teria direito de ter uma arma em casa, pois ganhara esse direito em plebiscito. E o prazo para essa opção se encerrava no final de dezembro. Daqui a poucos dias!
Eu, que já tinha enterrado meu rifle 22 e meu velho 38, corri ao quintal em busca da cova. Menos mal porque envolvera as armas em saco plástico. Desenterrei-as ainda receoso. A ferrugem apenas pinicara algumas partes. Ficara atemorizado pelas campanhas intensas para devolver as armas, pelas ameaças de pegar um a três anos de prisão se flagrado com uma arma em casa, pelas cifras gordas de prêmios pagos pelas devoluções voluntárias. Os padres nas igrejas, os pastores nos templos, até os aitolás tupiniquins conclamavam para a devolução logo. Quem é que não fica assustado?
Mas nunca devolveria por minha livre iniciativa. Por que me privaria de algo que considero imprescindível nesse faroeste onde vivo? Então decidi enterrá-las. Quem sabe, o assaltante ou o marginal (sempre armado e sem perigo de ser preso por isso) cometesse algum vacilo e me desse tempo de cavar o quintal, carregar a arma enferrujada com balas úmidas, e disparar, antes que chacinasse minha família? Pouco provável, mas me senti mais seguro tendo-as por perto, mesmo que não me servissem mais para nada. Continuei a dormir assustado e certamente morreria assustado, morando onde eu moro, onde as sirenes que tocam são as das ambulâncias do Samu, apanhando mais um ferido de fome, de moto ou de bala.
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Meu primo lá na Terra Vermelha de Itabaiana também enterrou
sua velha garrucha de-dois-tiros-e-um-pique, no pé de uma quixabeira
no fundo do pasto. Ficou atemorizado, especialmente por pertencer ao
outro partido. E a polícia estava o tempo todo nos sítios, entrando nas
casas, vasculhando os flechares, levantando os colchões de junco batido,
tomando até espingardas de matar rolinha. E o pior, dependendo da
cor do título, prendendo o lavrador assustado, mandando-o constituir
advogado. No maior rigor da lei.
É certo que eu me lembrava do plebiscito e até comemorara
a vitória, parabenizando em silêncio Alberto Fraga, o deputado que
puxou o povo para votar no “sim”. Mas esse negócio de eleição sempre
me deixa com o pé atrás. Pensei: ganhamos, e mais uma vez não
levamos. Sempre acontecia!
Soube apenas agora que posso manter uma arma em casa. Mas
ainda há tempo. Já confirmei na Internet. O pedreiro tinha razão. Vou
cuidar desse assunto amanhã, sem falta. Há pouquinho, telefonei para
o meu primo. Ele não entendeu direito, fez a maior confusão, falou em
armadilha.
Acho que vou ter que ir ao sítio e explicar pessoalmente que
ele também pode desenterrar a sua velha garrucha.
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50. A VIDA FÁCIL DE LADRÃO
Depois que o governo mandou sequestrar as armas dos cidadãos comuns, mesmo perdendo o plebiscito (houve uma convocação oficial para regularização de armas, contra vinte para tomá-las), ficou fácil demais roubar alguém. É só chegar, escondido ou às claras, e tomar o que quiser. Se o dono protestar ou ameaçar qualquer reação, existem duas alternativas óbvias para o ladrão: ou dá-lhe um tiro (tem acontecido muito) ou, simplesmente, mostra-lhe o revólver ameaçador. Tanto na primeira como na segunda, o ladrão pode ir embora tranquilo com o fruto de seu roubo.
Com uma profissão como essa, rendosa, e que não exige estudo para exercê-la, pois suas técnicas são naturais ao homem animal, as pessoas com alguma tendência (vocação) podem abraçá-la sem dificuldade.
-Ah! Mas tem a polícia-alguém pode falar.
Nas vezes em que algum membro da minha família foi assaltado, inclusive eu, nunca a polícia chegou a tempo de evitar ou de fazer algo efetivo-isso quando chegou. E, depois de feita a descrição do criminoso e de prestados demorados depoimentos, eu nunca soube que o ladrão tenha sido pego ou, se o foi, tenha sido condenado por isso. Nunca recuperei os bens roubados.
Eu acredito que a presença da polícia nos bairros, exigindo documentos e explicações de todos os suspeitos, rondando atenta pelas ruas, ajudaria a reduzir os roubos e os crimes em geral. Mas nunca dispensaria a ação da vítima, esta que sempre vai estar mais perto do que ninguém da cena do crime. Pois está sendo roubada. A somação dos dois (polícia e vítima) é que poderá inibir o ladrão, mostrando-lhe que o crime não vale a pena, levando-o a trabalhar e a ser, quem sabe, um bom cidadão.
O meu primo (Antônio de Dezi) mora na roça, no povoado Terra Vermelha de Itabaiana, onde os sítios são próximos, mas não a ponto de ser um aglomerado de casas. Se um morador gritar por socor112
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ro, dificilmente um vizinho vai escutar.
É noite, ainda cedo, lá no sítio de meu primo. As galinhas,
que dormem no quintal, estão sendo roubadas. Ele escuta o cocoricó
inquieto e fala para a esposa, deitada ao lado e ainda acordada:
-Estão roubando de novo nossas galinhas!
Mas não pode fazer mais do que isso, pois seu revólver foi
levado pelo delegado e ele ainda não se livrou do processo por porte
ilegal de arma. Alguém dedurara. Ele acha que foi o suspeito (limpando
o caminho) dos últimos roubos nos sítios. Roubaram também os
peixes de seu tanque, as melancias ainda verdes.
Roubam sua honra.
O Brasil honesto está assustado, sem auto-estima, tremendo
nos sítios do interior, nas casas dos bairros da cidade, até nos condomínios
fechados. Os nossos filhos aprendem, desde muito cedo, a serem
covardes, pois nem seus pais os podem defender.
O povo trabalhador está dominado.
Vale a pena viver assim?
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51. PRAÇA CAMERINO MINADA
Morei alguns anos na Praça Camerino. Era cômodo para a minha família. Meus filhos iam a pé ao colégio e eu pegava o ônibus a poucos passos de minha casa.
Estava acabando de almoçar, num dia como outro qualquer, quando meu filho, que estudava no turno da tarde, chegou gritando à porta da rua, que tinha sido roubado no caminho da escola. Levaram seu relógio e a sacola com os livros. Corri à praça e encontrei os livros e os cadernos espalhados num canteiro maltratado. Ele mostrou-me, no outro lado da praça, num ponto de ônibus da Barão, uns moleques taludos, três ou quadro:
-Foi um daqueles ali. O de boné vermelho!
Dentro de mim bateu um impulso de ir lá, tomar o relógio de meu filho e dar umas bordoadas no ladrão. Mas considerei que correria riscos. Poderia apanhar em vez de bater, eram quatro contra um.
Perto da praça há um a quartel da Polícia Militar, o central, a apenas um quarteirão, na Rua Itabaiana. Quando me preparava para correr até lá, quase me bati com dois soldados da corporação que chegavam à praça. Eu sempre os vira fazendo ronda ali, o que me deixava muito mais seguro. Afinal, morava numa região privilegiada, onde até havia soldados da polícia andando pelas ruas, zelando pela segurança dos cidadãos.
Abordei-os. Contei-lhes o acontecido, apontando os rapazes que ainda estavam no mesmo lugar, estudando outros incautos para lançarem a rede. Os dois soldados me olharam com ar de crítica. Eu insistia... Teriam que recuperar o relógio de meu filho. Teriam que prender o ladrão. Finalmente, um deles disse que entendia o meu problema e a minha revolta, mas, nesse caso, não podiam fazer nada.
-São ladrões de menor idade. Já os conhecemos, pois vêm
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agindo aqui há algum tempo. Se um de nós for lá para recuperar o
relógio de seu filho, pode se complicar na Justiça. Alguns colegas até
perderam o emprego por muito menos.
E aconselharam-me a procurar uma delegacia da Polícia Civil
e prestar queixa.
Fiz isso. Mas não apareceu ninguém (pelo menos que eu tenha
visto) para prender ou espantar os ladrões da Praça Camerino. Nem
nos dias seguintes. Meu filho perdeu o relógio e eu resolvi tirar minha
família de lá.
Ouço falar que continuam os assaltos a estudantes e transeuntes.
A praça continua minada. Os moleques taludos criaram asas e formam
agora uma multidão impune, que domina a cidade toda. Chegaram
também aqui onde moro hoje.
Acho que não vou ter mais para onde me mudar.
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52. PARA QUE DAR PARTE?
Minha inquilina do Santo Antônio, mantém uma pequena mercearia. Já foi assaltada duas vezes em uma semana. Os ladrões chegam de bicicleta, a pé, de carro, entram como se fossem clientes e, já ao seu lado, anunciam o assalto. Levam cigarros, dinheiro à mão, alguma mercadoria de valor. Vão embora sem pressa. Mas antes fazem a tradicional ameaça: voltam e dão-lhe um tiro se ela gritar por socorro e eles ouvirem.
Nesta última semana, eu passei por lá. Encontrei-a transtornada. Os ladrões haviam acabado de sair de sua loja, levando todo o dinheiro que guardara para me pagar o aluguel. Alguns vizinhos estavam tentando acalmá-la, daí eu acreditei que fora mesmo um roubo, não uma desculpa para não me pagar.
-Vamos à delegacia, dar parte desse assalto! – falei.
-Pra quê? Telefonamos à polícia logo que os ladrões saíram. Quanto o senhor que apostar como não virão?
Eu fiquei a tarde toda na sua loja e, realmente, não apareceu ninguém da polícia para prender os ladrões, o que seria improvável. Mesmo assim, aceitando a sua assertiva de que polícia não atende chamado, insisti que ela teria de ir à delegacia dar parte do assalto.
-É perda de tempo! Vou ficar o dia todo esperando para me atenderem. E depois a vida toda esperando que venham aqui investigar. Para evitar esse desgaste, nem vou lá! – falou.
Eu argumentei que a polícia precisava das informações sobre esses assaltos, para alimentar o banco de dados, para definir estratégias de ação nos bairros, para atacar a raiz do problema. Mas não teve jeito de convencê-la. Estava irredutível:
-Esses assaltos acontecem no bairro desde muito tempo. O banco de dados da polícia está estourando com tantos registros. Eles não agem porque não querem mesmo. – e continuou-Já tem três anos que negocio aqui neste ponto. Tem uma delegacia ali na Rua do Carmo. Pois eu lhe digo que nesse tempo todo, não passou por aqui, que
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eu tenha visto, uma patrulha da polícia, procurando ladrão. Quando
passa, é um carro em disparada, levando os policiais para suas casas.
E não deu parte do roubo.
Todos agem do mesmo jeito.
Perderam a crença na polícia da cidade.
-Dar parte pra quê?
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53. ALARMES NOTURNOS
Estão construindo vários prédios em torno da minha casa. São três construtoras diferentes. Ainda bem que acabaram com os pântanos-as maternidades de muriçocas que nos infernizavam. Mas, em compensação, o dia inteiro é um barulho infernal. Primeiro vieram os bate-estacas, depois os tratores aterrando, com suas buzinas de ré irritantes. Hoje os funcionários gritam uns com os outros, mexem com as mulheres que passam pela rua. Milhares de sons levantam o monstro do chão. Felizmente apenas pelo dia.
As obras ficam paradas durante a noite e nos finais de semana. Que tranquilidade! Mas nem tanto...
A segurança noturna é feita por um sistema eletrônico de câmeras, raios ultravioleta, sensores de todo tipo espalhados pelos canteiros. Para reduzir os custos, as construtoras eliminaram os vigias noturnos. E para reduzir ainda mais, dispensaram o serviço de monitoramento prestado pelas firmas de segurança.
Nas madrugadas, o apitaço é geral por aqui. Uma das três obras, por sorte a que está localizada mais longe de minha casa, começa a apitar antes das oito da noite. As outras se alternam: uma por volta da meia noite e a outra no começo da madrugada, ou vice-versa. Ou aleatoriamente. O certo mesmo é que, pela manhã, todas estão apitando até as sete horas, quando outra vez as equipes de pedreiros e ajudantes chegam para novo turno de trabalho.
Fui à sede da primeira construtora. Uma garota me atendeu com gentileza. Expliquei-lhe o motivo de minha visita. Ela nem chamou o chefe e me explicou:
-Não podemos evitar. O sistema pode disparar com o vento da praia, com um rato que circule pelas lajes. Enquanto os alarmes estão apitando, estamos garantidos. Nenhum ladrão vai arriscar entrar no prédio sob tanto apito. Imagina que a polícia chegará a qualquer momento para investigar!
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E continuou:
-Até os moradores da vizinhança, sem contar com as pessoas
que andam pelas ruas, cuidam para que o prédio não seja roubado.
Com o alarme disparado, todos ficam atentos, olhando. Procurando o
motivo (o ladrão). E ladrão nenhum gosta de trabalhar assim observado.
Ia continuar ainda, mas eu a interrompi:
-E a nossa tranquilidade, como fica?
Nem se fez de rogada e respondeu na ponta da língua:
-Logo terminaremos a obra e vocês dormirão sossegados. É o
preço do progresso, que todos temos que pagar!
Estou me estressando muito facilmente e meu médico recomendou-
me serenidade nessas horas. Meu coração pode parar.
Percebi que não estava conseguindo nada. Respirei fundo. Para
salvar minha vida, fui embora.
É melhor ser incomodado pelas sirenes da terra do que embalado
pelos clarins dos querubins do céu.
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54. DESACATO À AUTORIDADE
Zé Jacaré é uma figura popular na cidade de Aracaju. Mas já foi muito mais, no tempo em que jogava pelada e frequentava assiduamente os recantos mais sagrados dos homens solteiros.
Zé Jacaré parou seu fusca na Praça do Cemitério Santa Isabel, como faz todo sábado à tarde. Vinha cuidar do parceiro, depois de uma semana inteira no batente. O seu lavador, o único em quem confiava, tinha ido comprar estopa no mercado. Mas voltaria logo, disseram os outros lavadores.
Esperaria!
Fechou o carro, conferiu na maçaneta se o comando surtira efeito e caminhou até um quiosque no outro lado da praça, a fim de tomar uma cervejinha. Não era de perder tempo, e com o calor que estava... Apoiou-se no granito preto do balcão, numa posição que dava para ver o seu carro parado sob um oitizeiro copado. Levantou à boca o copo suado. Nem o tinha ainda encostado nos lábios carentes, quando seus olhos sintonizaram alguém entrando no seu carro e inclinando-se por cima do volante. Um ladrão de toca-fitas! Soltou o copo e gritou, já correndo, tentando evitar o roubo. Mas o ladrão já concluíra o malfeito e caminhava ligeiro para um beco onde a praça se encontra com a Rua Esperanto. Zé o acompanhava com todos os seus sentidos. O ladrão entrou numa casa abandonada (que hoje acomoda o Conselho Tutelar). Zé entrou pela mesma porta alguns segundos depois. Entrou e mergulhou casa adentro. Quando chegou ao fundo da casa, deparou-se com uma roda de homens sem camisa, acocorados, jogando dados. O toca-fitas (reconheceu-o de imediato) estava no meio da roda, em frente ao ladrão que perseguira. Ninguém levantou a vista. Parecia que sua presença nem fora percebida. Zé pensou que talvez fosse perigoso o enfrentamento, considerando que seria um contra um bando inteiro. Deu meia-volta e saiu da casa.
E correu à delegacia que ficava perto, na Rua do Carmo. E lá teve muitas dificuldades!
O delegado de plantão estava presente (muita sorte ou muito azar) e mandou trazer para sua sala o cidadão exaltado que queria a
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todo custo levar uma patrulha até a casa abandonada para recuperar
um reles toca-fitas.
Zé continuou exigindo providências! O Delegado falou que
conhecia os marginais e que não adiantaria ir lá agora com o contingente
que dispunha. Zé subiu pelas paredes! Sugeriu que a polícia
comia também.
À meia-noite ainda continuavam as negociações da família
com o delegado, tentando soltar Zé, que fora preso por desacato. Pelo
gosto do delegado, Zé dormiria na cadeia para, na manhã seguinte, ser
aberto o competente processo.
O policial de plantão, o que mais sofrera com a indignação de
Zé Jacaré, ficou falando para as pessoas que acorreram à delegacia,
após a saída do preso:
-Devia era descer para a penitenciária! Aprender a respeitar
autoridade!
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Minha Querida Aracaju Aflita
O texto deste livro foi composto em Times New Roman Regular c12
No formato 15x21 e impresso em papel Offset 75g.
Capa Couchê Fosco 230g.
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Antônio Saracura
Marcelo Déda Chagas
Jakson Barreto de Lima
Francisco de Assis Dantas
Governador do Estado
Vice-Governador
Secretário de Estado do Governo
Jorge Carvalho do Nascimento
Mílton Alves
Carlos Alberto Leite Prado
Lara Aguiar
Diretor-Presidente
Diretor Industrial
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Gerente Editorial
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